O mundo vive uma brutal crise de confiança. Abordei o tema, de forma parcial, na minha coluna passada, ao tratar do inevitável mal-estar na política. O tema é essencial para o desenvolvimento humano porque todo progresso econômico e social tem sido feito à base de confiança. Confiança hoje presente em coisas tão triviais como atravessar a rua com o sinal verde ou entrar em um elevador acreditando que ele funcionará.
A confiança vale também para um comerciante na Costa Rica que aceita o cartão de crédito de um turista japonês e para um brasileiro que utiliza um Uber em seu deslocamento na Europa. Todo o comércio da humanidade — quando ainda não existiam mecanismos de validação como ordens de pagamento, faturas, cartões de crédito, entre outros — expandiu-se com base na confiança mútua. Infelizmente, quando o mundo entra em “modo desconfiança”, tudo pode ficar muito difícil.
Desde os anos 60 a confiança nas instituições vem despencando. No livro O Fim do Poder, o escritor venezuelano Moises Naím aborda o fenômeno com precisão. Instituições como governo e religião perdem prestígio e a consequência disso é a desconfiança generalizada, inclusive em torno dos sistemas políticos. Com a perda do oligopólio da confiança exercido por essas instituições, outras assumem seus papéis. Na religião, o catolicismo perde espaço para os movimentos pentecostais. No sistema financeiro, transações ocorrem sem a intermediação de autoridades constituídas.
“Até mesmo para duvidar deve-se buscar o método, e não, simplesmente, desacreditar por desacreditar”
A emergência das redes sociais gerou a massificação das fake news, que, por sua vez, também desgastam o sentimento de confiança. A pandemia de Covid-19 somente agravou a situação de desconfiança que vem se disseminando nas últimas décadas. E o negacionismo antivacina é uma das provas da crise. Em todo o mundo existem parcelas da população que resistem à vacinação.
Provocados pelo deslocamento da confiança, dois fenômenos simultâneos complementam o quadro. O professor de filosofia Gabriel Ferreira, em artigo publicado em 2017 em O Estado de S. Paulo, apontou a situação com um título magistral para seu texto: “O declínio da expertise e a ascensão do bullshit”. Dizia ele: “O saber não é somente alvo de uma desconfiada indiferença, ele é agora odiosamente renegado em favor de uma equidade estúpida”. O bullshit, literalmente “esterco de gado”, é composto de fragmentos de verdades, mentiras sinceras e doses de delírio que trafegam por nossa realidade.
Obviamente, em tempos de modernidade, a dúvida é a regra, e assim deve ser. Nesse contexto, como disse o sociólogo britânico Anthony Giddens, tudo o que é conhecido assume a forma de hipóteses abertas à revisão. Mas até mesmo para duvidar deve-se buscar o método, e não, simplesmente, desacreditar por desacreditar.
Em um ambiente de crescente desconfiança, descrença na ciência e ampla circulação de bullshits, vamos levar gerações para reconstruir a credibilidade nas instituições, nos princípios e nos valores que asseguraram o avanço da civilização. Vivemos um ponto de inflexão que pode nos levar ao autoritarismo da ignorância, se não reconstruirmos mecanismos de confiança e não voltarmos a acreditar na ciência.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776