Disfarces toscos, barbas que parecem saídas de uma montagem de circo de interior e uma coleção de perucas completamente ridículas seriam de causar gargalhadas de incredulidade se não envolvessem alguns dos acontecimentos mais vulcânicos no país que tem o maior arsenal nuclear do mundo e está numa guerra altamente desestabilizadora contra um vizinho apoiado pelos Estados Unidos.
Para complicar, o presidente da Belarus, Alexander Lukashenko, cujo papel na desarticulação da crise entre Ievgueni Prigozhin e Vladimir Putin nem de longe está esclarecido, abriu um novo capítulo do mistério Prigozhin ao afirmar que o chefe mercenário agora está na Rússia.
Reação do porta-voz Dimitri Peskov: “Não vigiamos todos os seus movimentos. Não temos a possibilidade nem a vontade de fazer isso”.
Tudo o que Peskov fala costuma ser o oposto da realidade, mas sua declaração de ontem parece fazer parte de um universo paralelo.
E o que aconteceu com o acordo que colocou fim à rebelião desfechada por Prigozhin em 23 de junho, pelo qual ele e seus homens que não entrassem para o exército regular se recolheriam a instalações militares na Belarus? Não vale mais? Prigozhin pode ir para onde quiser?
O mistério só aumenta.
Outro exemplo: as forças de segurança divulgaram com grande estardalhaço o conteúdo de pilhas de caixas encontradas em duas vans nos domínios de Prigozhin, em São Petersburgo. Logo em seguida, anunciaram que o dinheiro e as barras de ouro, no valor 111 milhões de dólares, haviam sido devolvidos a seu dono. Como ele recebeu anistia em troca do fim da rebelião, tem direito à restituição, afirmaram.
É uma palhaçada atrás da outra. Na falta de explicações racionais, alguns jornalistas disseram que o objetivo das forças de segurança era “humilhar” Prigozhin ao divulgar as fotos de sua mansão cafona, inclusive um armário só para perucas, um crocodilo empalhado e as imagens em que ele aparece com os diferentes e ridículos disfarces. Sem contar a foto de cabeças decepadas.
É uma explicação totalmente sem sentido, que só prospera por causa da perplexidade geral que domina o mundo desde o início da rebelião de 23 de junho, seu fim precipitado e mal explicado e as atividades do chefe mercenário depois de tudo isso.
Um exemplo das dúvidas: ele continua a mandar no Grupo Wagner? Continua a pagar os salários de seus integrantes, como a devolução do dinheiro brevemente confiscado indica? E onde estão os muitos milhares de homens que combateram nas frentes mais mortíferas da guerra contra a Ucrânia? Entregaram-se, foram para casa, incorporaram-se ao exército? Aceitaram pacificamente que não terão mais os privilégios de integrar uma organização com suas próprias regras – e um pagamento melhor?
O ambiente de perplexidade alimenta teorias conspiratórias. A mais recente delas diz que foi tudo um plano de Putin e Prigozhin para se apoderarem da Belarus, livrarem-se de um aliado fraco como Lukashenko e dominarem mais um território a partir do qual podem atacar a Ucrânia pelo norte.
É uma teoria incrivelmente frágil – a começar pelo fato de que a Ucrânia já mantém todo o exército russo totalmente mobilizado. Não faz o menor sentido “tomar” um outro país, muito menos um que tem um regime obedientemente alinhado a Moscou.
“Eu não sei tudo sobre a relação entre Putin e Prigozhin e não quero saber tudo”, incitou Lukashenko. “Vocês acham que Putin é tão vingativo que vai apagar Prigozhin amanhã? Acho que não.”
Todo mundo, claro, acha que sim – ou essa seria a lógica. A falta dela alimenta as especulações. E o ridículo agora alcança até o próprio Putin, com a armação de uma recepção especial a uma menininha de 8 anos do Daguestão, uma república muçulmana do Cáucaso, a pretexto de que ela tinha chorado quando não conseguiu ver o presidente russo numa visita à capital.
O Putin “bonzinho”, com dois buquês de flores, um para a menina e outro para a mãe dela, parecia a perfeita encarnação do lobo mau disfarçado de vovozinha. “Por que esse sorriso tão grande?”, poderia ter perguntado a menina ao presidente que tenta se passar por simpático ao mesmo tempo em que mata, literalmente, criancinhas nos prédios residenciais da Ucrânia sistematicamente destruídos por mísseis.
Outro conspiracionismo: Putin “permitiu” o golpe para apavorar a elite russa diante da possibilidade de ter um destemperado como Prigozhin no comando de um regime golpista.
O chefe mercenário, ou ex-chefe, vivia esculhambando os ricos e despreocupados que levam uma vida de luxo em Moscou ou São Petersburgo enquanto os camponeses vão morrer no fronte na Ucrânia. É, naturalmente, um clássico russo. Se Putin precisou ameaçar as elites com o fantasma de Prigozhin é porque definitivamente não tem o controle pleno da situação.
Outro clássico é o “revólver de Chekov”, a teoria de que, se uma arma aparece no primeiro ato de uma peça, ela precisa ser disparada em algum momento – ou seja, todos os elementos de uma obra de teatro, ou de qualquer outra modalidade literária, precisam ser intrinsicamente necessários, não podem ser apenas decorativos.
Prigozhin contrariou esse princípio dramatúrgico: começou com uma grande explosão, ocupando uma cidade do sul da Rússia, derrubando helicópteros e avançando para Moscou. Mas o “revólver de Chekov” empunhado por Prigozhin subitamente silenciou e ele foi “perdoado”, contrariando todos os princípios mais fundamentais do estilo O Poderoso Chefão que comanda a política russa desde sempre.
É essa contradição narrativa que continua sem solução. As matrioskas ainda estão saindo dos modelos maiores e deixando intrigas no seu caminho.
Prigozhin fantasiado de militar de países do Oriente Médio é apenas mais uma das bonequinhas pairando num universo de dúvidas. Se ele está em São Petersburgo ou Moscou, está por cima. Se ninguém sabe onde está, está mais por cima ainda, por agir, obrigatoriamente, com o apoio de algum santo forte do Kremlin e adjacências. Exílio, cadeia ou caixão costumam ser os destinos finais dos traidores ou inimigos políticos, mas o ex-detento e ex-cozinheiro está conseguindo colocar muita coisa de cabeça para baixo.