Presidente Mike Pence? Esta hipótese teve alta circulação nos momentos febris vividos depois do assalto ao Congresso pela turba insuflada por Donald Trump.
Afável e esperto, Pence fechou a cara, ciente da gravidade do momento, ao retomar a sessão que certificou a eleição de Joe Biden depois da invasão. Naqueles momentos e imediatamente depois deles, transformou-se no homem mais pressionado dos Estados Unidos.
Só ele, como vice-presidente, poderia invocar o artigo 25, a emenda constitucional que permite teoricamente – até hoje nunca foi usada – ao conjunto de ministros declarar o presidente “incapaz de exercer os poderes e as obrigações do cargo”.
O artigo 25 foi incorporado à constituição em 1967. A motivação foi a situação criada com o assassinato de John Kennedy e a posse de Lyndon Johnson, um presidente sem vice, com potencial vazio de poder.
Fora morte ou incapacitação física, o artigo entreabre a porta para casos de derrocada psíquica ou cognitiva. Seu autor, o senador Birch Bayh, dizia que a linguagem era deliberadamente vaga – para se adaptar a circunstâncias mais fluídas.
Abriu caminho, assim, a inúmeros roteiros de ficção sobre vices ambiciosos que depõem um presidente fraco. Ou vices bem intencionados que tiram presidentes perigosos – obviamente, o caso atual.
Foi Trump quem rompeu com Pence por causa da decisão do vice-presidente de não contestar a certificação de Joe Biden como presidente, ridicularizando-o no infame discurso que antecedeu a invasão do Congresso.
E fez mais: proibiu que o chefe de gabinete de Pence, Marc Short, entrasse na Casa Branca depois da derrocada.
Short sempre fez a ponte entre Pence e os milionários conservadores como os irmãos Koch que abominavam Trump – uma eleição entre ele ou Hillary Clinton era como “escolher entre câncer e ataque cardíaco”, diziam na época -, mas consideravam o vice-presidente como o porta-voz perfeito de suas ideias.
Pence cresceu de estatura na hora do vamos ver. Resistiu a Trump, a quem foi tão fiel durante quatro anos, e coordenou a intervenção das forças da ordem para retomar o Congresso, invadido com facilidade tão escandalosa que o comandante da polícia do Capitólio foi obrigado a pedir demissão.
Teria interesse – ou obrigação moral – em ser presidente por pouco mais de dez dias? Dificilmente. A crise parece sob controle e Trump aceitou fazer a transição da maneira mais normal possível nas condições extremamente anormais que ele próprio criou.
Resta o processo de impeachment que os dois principais nomes democrata no Legislativo, Nancy Pelosi, na Câmara, e Chuck Schumer, no Senado, disseram que vão abrir.
Os dois democratas sabem muito bem que é complicado e até inutilmente arriscado tocar um impeachment no momento – exatamente a razão pela qual tentaram pressionar Pence a fazer o serviço de forma mais rápida.
“Eles nos deixaram esperando por 25 minutos e depois disseram que o vice-presidente não atenderia o telefone”, reclamou Schumer.
Apesar do susto, os democratas estão com todas as vantagens na mão: elegeram o presidente, conseguiram empate no Senado (onde o desempate será feito pela nova vice-presidente Kamala Harris), viram Trump se autodestruir em grande escala e ameaçar levar junto o Partido Republicano.
Querem garantir que as coisas continuem assim.
A base de Trump não vai desaparecer num passe de mágica, só porque uma minoria descabeçada resolveu invadir o Congresso e todo mundo está dizendo que o presidente tentou dar um “golpe” – inclusive gente que sabe perfeitamente o que é um golpe de verdade.
Se quiser concorrer a presidente – possibilidade que cogita “desde que saiu da barriga da mãe”, segundo um conhecido de Indiana -, terá que se reconciliar com eles.
Pence tem a simpatia, e boa parte dos votos, do eleitorado evangélico – de família católica, ele se tornou evangélico na época da faculdade, seduzido pelo carismático pastor Billy Graham.
Isso não vai mudar.
Só precisa fazer a travessia dos atribulados dias finais de Trump. O Wall Street Journal defendeu em editorial uma alternativa nixoniana ao impeachment ou à invocação do artigo 25: a renúncia.
Por causa de Trump, os republicanos perderam “a Câmara, a Casa Branca e agora o Senado. Pior ainda, ele traiu seus leais seguidores ao mentir a eles sobre as eleições e a autoridade do Congresso e do senhor Pence para revertê-las. Recusou-se a aceitar a combinação fundamental da democracia, que é aceitar o resultado, quer ganhe ou quer perca”.
“Seria melhor para todos, inclusive ele, se fosse embora em silêncio”.
Ninguém tem ilusões de que isso vai acontecer.
E se a Coreia do Norte fizer uma loucura exatamente nesse dias finais? Ou o Irã considerar o momento adequado para vingar a morte do general Qassem Soleimani? Ou o Estado Islâmico ressurgir com um grande atentado?
Sempre restam Pence e o artigo 25.