O tempo passa – e isso não ajuda nada a causa da liberdade da Ucrânia. Volodymyr Zelensky já não tem mais o sabor de novidade – um comediante que virou líder festejado de um país em guerra, os americanos vão deixando de apoiar a cara solidariedade e até um país como a Polônia, que conhece mais do que nenhum outro o que é viver sob o jugo russo, está se estranhando com o vizinho.
O motivo é relativamente pequeno, mas tem importância vital para os poloneses: a União Europeia levantou a proibição à importação de cereais da Ucrânia, tentando compensar o bloqueio russo. Para produtores como Polônia, Hungria e Eslováquia é uma facada, concorrência desleal ou qualquer outro nome que se queira dar. Produzir na rica terra preta da Ucrânia e sem as exigências da União Europeia é mais barato.
Depois da invasão, Polônia e Ucrânia solidificaram uma amizade complicada – o passado tem um peso terrível nessa região do mundo, que já foi chamada de “terras de sangue”. A Polônia já foi dona de uma parte da Ucrânia, os ultranacionalistas ucranianos mataram pelo menos trinta mil poloneses étnicos em seu território durante a II Guerra Mundial e as fronteiras foram artificialmente estabelecidas durante o domínio soviético.
Agora, as mil juras de amor azedaram a ponto de levar o governo polonês a anunciar que não vai mais ceder armamentos de seu arsenal à Ucrânia, embora o trânsito continue livre para material bélico de outros países.
Sem nenhuma diplomacia, Zelensky insinuou que a Polônia estava fazendo o jogo dos russos. A Polônia convocou seu embaixador em Kiev.
Dá até para ouvir as gargalhadas vindas de Moscou.
Nos Estados Unidos, também cresce a falta de comprometimento com a causa ucraniana, tão bem exposta e defendida por Joe Biden no seu discurso na Assembleia Geral da ONU.
A versão da direita trumpista – não é assunto nosso, os ucranianos não são confiáveis, precisamos do dinheiro para americanos necessitados e existe o risco de uma guerra entre potências nucleares – vai ganhando terreno.
Kevin McCarthy, o presidente da Câmara onde Zelensky foi recebido com aplausos entusiásticos há um ano, mostrou cinicamente como os ventos mudaram. Vetou um discurso ao Congresso e foi azedo na cobrança.
“Zelensky por acaso foi eleito para o Congresso? Ele é nosso presidente? Não tenho que assumir compromissos. E tenho perguntas a fazer”, afirmou.
“Onde está a prestação de contas do dinheiro que já mandamos? Qual é o plano para a vitória?”.
Pois está aí o problema principal: trumpistas e correlatos dificilmente estariam tão agressivos se a Ucrânia estivesse avançando em sua contraofensiva e recuperando territórios que lhe dariam força para negociar garantias de proteção contra futuras invasões. Os resultados de dois meses de ataques são melancólicos: apenas umas casquinhas, irrisórias, foram tomadas, a um preço alto em vidas humanas e em prestígio. Os ucranianos valentes e criativos que fizeram retroceder a ofensiva russa no começo da guerra agora mal conseguem chegar à primeira linha de defesa dos invasores.
A opinião pública é caprichosa e inconstante. O que parecia um final de filme – a vitória dos bons sobre os maus -, vai dando lugar a uma situação de impasse. Poucos querem lembrar que a Aliança dos Rebeldes levou décadas para virar o jogo contra o Império Galáctico. Na série, a questão se resolve em filmes de duas ou três horas de duração.
E Zelensky vai perdendo as semelhanças como Luke Skywalker. Segundo a pesquisas mais recente, 55% dos americanos não querem que os Estados Unidos deem mais ajuda à Ucrânia.
Em várias visitas a Kiev, o presidente polonês, Andrzej Duda, exaltou o compromisso inabalável com a Ucrânia. Agora, comparou o país “ao afogado que se agarra a qualquer coisa que apareça”. Ou seja, pode arrastar para o fundo os amigos que estendem a mão. Essa é uma referência à enorme quantidade de material bélico dado pela Polônia à Ucrânia, incluindo praticamente todos os tanques e outras plataformas que datavam da era soviética e equipamentos mais modernos como o Leopard 1 e o Leopard 2.
“Esta generosidade está chegando ao fim em parte porque a despensa está vazia”, escreveu Robert Clark no Telegraph, num artigo em que menciona a “desconfortável realidade que se espalha por capitais europeias”.
“Gosto da ousadia e de tudo mais”, ironizou o deputado republicano Tim Burchett, que integra a Comissão de Relações Exteriores, respondendo aos apelos de Zelensky. “Mas não temos dinheiro. Estamos quebrados”.
É de interesse de todos os habitantes do planeta Terra que uma invasão e uma anexação territorial não sejam bem sucedidas pois destroem os princípios da soberania e da autodeterminação dos povos, conquistado ao preço de literalmente centenas de milhões de vidas. O crime não pode compensar, mas é isso que vai acontecer se a narrativa da direita nacionalista, tão ironicamente coincidente com a da esquerda atrasada, conseguir predominar.