Silvio Berlusconi vai afastar das campanhas de publicidade do Milan os jogadores que apoiam a independência da Catalunha. Ou os argentinos que votam no peronismo. Ou os de origem turca que são a favor do atual regime Erdogan. Já imaginaram o escândalo?
Com sinal invertido, foi o que aconteceu com Ronaldinho e Rivaldo, vilmente ameaçados pelo Barcelona de enxugamento das funções publicitárias como “embaixadores” do time por tomarem posição a favor do candidato Jair Bolsonaro.
Time de futebol, Ku Klux Klan e outros elementos alienígenas se pronunciando sobre a eleição presidencial brasileira são fenômenos rotineiros nos tempos atuais.
Donald Trump praticamente criou sozinho o ódio sem fronteiras, conseguindo uma espécie de internacional que a esquerda sempre tentou costurar, com sucesso apenas relativo.
Mas é preciso atenção para diferenciar as manifestações do tipo. O apoio de David Duke a Jair Bolsonaro, por exemplo, vem de um nicho de maluquice dos Estados Unidos que sempre tenta pegar carona em acontecimentos muito maiores.
Duke é o ex-Grande Dragão da Ku Klux Klan, o grupo que foi poderoso no Sul dos Estados Unidos depois da Guerra Civil e hoje tenta ridiculamente se passar por vanguarda do movimento pela supremacia branca.
Uma das piadas sobre o Klan é que tem mais informantes do FBI infiltrados em suas fileiras do que militantes legítimos – a palavra aí, vale nos dois sentidos, pois nos Estados Unidos não é proibido ser supremacista, nazista ou outras barbaridades.
De uma maneira ou de outra, a atitude do Klan é repugnante e irrelevante.
Duke tentou se associar a Trump na época da eleição americana e, agora, a Bolsonaro. Este foi mais rápido no repúdio ao pequeno dragão, inclusive ressaltando a característica que os supremacistas mais abominam: a miscigenação em massa do Brasil.
Mas o rótulo cola, inevitavelmente. Embora sem ter nem sombra do destaque que qualquer assunto ligado a futebol, no Brasil e no resto do mundo onde o jogo é venerado.
Durante a Copa, a mistura tóxica de futebol com política já estava formada, mas não houve nada parecido com a atitude do Barcelona, tentando colocar o peso do interesse financeiro para forçar alinhamento político.
No caso mais famoso, ocorreu o contrário: o jogador Mesut Ozil disse que não jogaria mais pela seleção da Alemanha por ter sido insultado como pela origem turca e responsabilizado pela desclassificação do time. Ozil já estava enrolado por ter feito uma visita a Recep Erdogan, o presidente turco que cada vez mais captura o poder total.
“Quando ganho, sou alemão. Quando perco, sou turco”, reclamou Ozil, retratando tensões étnicas que existem na Alemanha e nem remotamente têm qualquer relação com o Brasil.
O jogador também elogiou o apoio total que sempre recebeu do técnico alemão. Exatamente o oposto do que aconteceu com Ronaldinho e Rivaldo, que como veteranos do Barcelona têm contrato para eventos de divulgação chamados Barça Legends.
“É evidente que o Barça defende valores democráticos que não concordam com a mensagem do candidato”, disse o porta-voz Josep Vives, ao insinuar que os ex-jogadores poderiam ser colocados na geladeira. “Mas respeitamos o pensamento das pessoas.”
Era o que faltava: um representante de time de futebol “permitir” a liberdade de pensamento. E de um time como o Barcelona, profundamente envolvido no separatismo da Catalunha.
Um assunto delicadíssimo: um pouco mais da metade da população é a favor da independência, mesmo que vá contra um dos princípios fundamentos da constituição espanhola. A outra metade sofre com a hipótese de ter de mudar de país na marra.
Os separatistas são antidemocráticos por quererem passar por cima da constituição? Teoricamente, sim. O estado de direito é um bem irrenunciável. Na prática, o desejo de ruptura tem razões históricas e políticas complexas que precisam ser tratadas com cuidado e respeito.
Se a seleção espanhola, por exemplo, resolvesse “congelar” jogadores catalães – desejo de muitos torcedores espanhóis – seria um escândalo de proporções tempestuosas.
Mais ridículos ainda foram os comentários de sites e jornais especializados em futebol que, subitamente, sentiram-se na obrigação de iluminar os recônditos da política brasileira.
“Alguns apoios causaram mais surpresa do que outros”, escreveu o site World News Sports. “O de Kaká, vindo de um homem que nunca escondeu sua crença nos princípios evangélicos, era inteiramente esperado em razão do apoio que Bolsonaro recebeu do setor, uma das colunas de sustentação da política conservadora no Brasil.”
Ufa, ainda bem que Kaká nunca escondeu suas convicções religiosas.
“Mas ver Ronaldinho, famoso pela vida social sem amarras e seu comportamento descontraído, se manifestar a favor de um político cujas visões e opiniões sociais flertam com a ideologia fascista, foi, para dizer o mínimo, um choque.”
Entenderam? Por ser liberal no comportamento, Ronaldinho não tem o direito a manifestar opinião política que contrarie a visão bizarra do cronista esportivo.
E o que de tão chocante disse o ex-jogador? “Por um Brasil melhor, desejo paz, segurança e alguém que nos devolva a alegria. Eu escolhi viver no Brasil e quero um Brasil melhor para todos.”
Rivaldo elaborou mais, numa das melhores definições sobre o futuro imediato e o passado recente já feitas sobre o Brasil: “Precisamos que ele resolva os problemas do nosso país e não que nos ensine valores, isso temos que aprender em casa e na escola. Se tivéssemos que aprender valores com o presidente, hoje estaríamos presos em Curitiba.”
Pode ser, e muito possivelmente será, que dê tudo errado. Mas os ex-jogadores exprimiram desejos sinceros, sem a menor conotação de discriminação ou ódio, compartilhados por milhões de brasileiros que não querem “aumentar a divisão entre ricos e pobres” ou promover conflitos raciais, segundo outras maluquices correntes na cobertura internacional.
Como na antiga piada sobre a impossibilidade do comunismo no Brasil, traz o fascismo para cá que nós avacaia com ele.