Sexo, abuso, política e religião; agora, na Suprema Corte
Do Vaticano a Washington, denúncias de abusos, hétero e homo, abalam estruturas e, como sempre, são tratadas segundo preferências ideológicas
O segundo maior desejo dos antitrumpistas, depois do impeachment, é impedir que o Senado americano aprove a nomeação de Brett Kavanaugh como novo juiz da Suprema Corte.
Com 53 anos e uma formação jurídica mais sólida do que o Monte Rushmore, ele projetaria a era Trump muito além do final do mandato presidencial, natural ou precipitado pela quantidade fenomenal de inimigos que tem, dentro e fora do governo.
A questão constitucional mais incandescente, que poderia ser tratada de novo em algum momento do futuro, trata da posse e do porte de armas, garantidos pela Segunda Emenda, mas sujeita a interpretações constitucionais dúbias. Ninguém pode ter certeza sobre o que sai de cabeça de juiz, mas Kavanaugh é indubitavelmente um pilar da Segunda.
Numa manobra que vem sendo armada desde julho e foi guardada como carta secreta durante todas as sabatinas no Senado, a bomba foi colocada debaixo do assento quase garantido dele entre os Supremos.
É uma bomba de feito retardado. Christine Blasey Ford, hoje com 51 anos e um cargo de pesquisadora em Psicologia em Palo Alto, onde é mais fácil achar uma águia americana de duas cabeças do que um simpatizante de Trump, denuncia o seguinte: tinha 15 anos, estava bebendo cerveja com quatro rapazes numa casa.
Quando foi ao banheiro, Kavanaugh e um amigo, Mike Judge, acuaram-na no alto da escada. Levada a um quarto, o jovem Kavanaugh, na época com 17 anos, jogou-a numa cama e tentou tirar a roupa e o maiô que vestia por baixo. Tapou sua boca quando começou a gritar.
Conseguiu se livrar depois que Judge, completamente bêbado, e rindo muito, se jogou em cima de ambos, duas vezes, permitindo a escapada.
Christine disse que sofreu fortes abalos emocionais e só foi contar a história toda muito tempo depois, em 2012, quando fazia terapia de casal.
Não foi exatamente uma situação inédita entre adolescentes que bebem demais e não resultou em violação. Em lugar do papel de vítima, ela poderia ter se sentido vitoriosa: “Dei um passa fora em dois moleques idiotas que quiseram se meter comigo”.
‘Um beijinho’
Quem pode dizer como alguém vai reagir? É possível, no entanto, garantir que poucas mulheres esquecem episódios assim, mesmo sem consequências mais graves.
Também é possível ter certeza absoluta que os antitrumpistas consideram o caso que remonta a 36 anos como um abuso sexual hediondo que desqualifica peremptoriamente a nomeação do juiz.
E, claro, os trumpistas acham que foi tudo uma armação, inventada, exagerada ou irrelevante, pela idade e o tempo envolvidos. Ou um caso “muito, muito, muito fraco”, segundo as palavras usadas pela advogada contratada por Christine Blasey, uma especialista em processos por abuso sexual.
A advogada, Debra Katz, desqualificou nesses termos uma das acusações de abuso que envolvia o presidente Bill Clinton.
Especificamente, a denúncia de Paula Jones, recepcionista de hotel que foi chamada ao quarto de Clinton quando ele era governador de Arkansas e agarrada à força.
A certa altura, segundo ela, Clinton baixou as calças, mostrou o elemento envolvido nesse tipo de ação e pediu: “Dá um beijinho”.
Paula diz que conseguiu se safar, processou o governador e fez um acordo de indenização de 850 mil dólares. Manteve o silêncio exigido até que o caso de Monica Lewinsky estourasse e sua história entrasse na roda.
Até hoje, é considerada vítima de um predador alfa por republicanos ou uma safada mentirosa pelos clintonistas e adjacentes.
Os casos de abuso envolvendo personalidades públicas têm a característica de provocar esse tipo de divisão.
Desde a semana passada, por exemplo, está afastado do cargo, possivelmente para sempre, o porta-voz do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, David Keys. Um deputado da oposição de esquerda já propôs que o embaixador de Israel em Washington seja investigado por não comunicar as queixas sobre o comportamento de Keys.
Já apareceram mais de uma dezena de casos, que vão da insistência agressiva à imobilização forçada, que é crime.
A primeira mulher a denunciar Keys, americano que se tornou cidadão israelense e acabou no governo de Netanyahu, foi Julia Salazar, uma das jovens estrelas da nova esquerda que estão abalando os políticos democratas tradicionais.
Mentiras compulsivas
Com apenas 26 anos, Julia ganhou a candidatura ao Senado estadual de Nova York. Mesmo antes do caso de Keys, já era enrolada: mentiu que era judia, “refugiada” colombiana e de família pobre.
É nascida na Flórida, batizada como católica, de classe média e estudou em Columbia. Também apoiava o Partido Republicano antes de abraçar a modinha do socialismo à la americana, uma espécie de jabuti em árvore.
Foi como estudante em Columbia que procurou Keys para discutir temas relacionados ao Oriente Médio. Acabou no apartamento dele, obrigada, segundo denunciou, a fazer sexo oral para poder ir embora.
Quem mente em aspectos tão importantes, como nacionalidade e religião, pode ser considerada indigna de crédito numa denúncia desse quilate? Ou uma mentirosa compulsiva também pode sofrer uma agressão sexual e falar a verdade sobre ela?
Ambas as respostas, para complicar, são positivas. No caso de Julia Salazar, outras denúncias sobre o modus operandi de Keys, embora sem desfecho tão grave, corroboram o que disse.
O caso mais famoso do tipo envolvendo a Suprema Corte americana foi o das denúncias de abuso feitas por Anita Hill contra Clarence Thomas.
As acusações surgiram durante as audiências do Senado, ao contrário do que acontece agora com Kavanaugh. Anita, uma beldade negra que passava grande segurança e dignidade, descreveu anos de assédio quando trabalhou em dois órgãos do governo com Thomas (o mais sórdido envolvia um pelo púbico colocado numa lata de refrigerante).
Clarence Thomas rebateu com todas as armas, inclusive a voluntária mudança de emprego de Anita para continuar trabalhando com ele. Conseguiu a aprovação do Senado e continua firme na Suprema Corte, como o primeiro juiz negro conservador.
Durante anos, seguiu a política de não falar sobre o caso, mas sua mulher não teve a mesma disciplina. Anita Hill virou uma heroína democrata e fez uma bem protegida carreira na Universidade Brandeis. Declarou agora, nada surpreendentemente, que acredita em Christine Blasey.
Sexo intensivo
As simpatias ideológicas que levam a acreditar ou desacreditar em denúncias de abusos sexuais feitas muito a posteriori, sem B.O., investigação policial e relatórios médicos, estão criando uma situação bizarra em relação à crise que estremece a Igreja.
Habitualmente, todo o espectro da imprensa à esquerda dá muito destaque aos escândalos de abuso de crianças e jovens, não só porque são abomináveis, mas por reforçarem a imagem da Igreja como uma instituição falida e depravada.
Agora que o envolvido é o papa Francisco, que cultivou cuidadosamente a imagem de simpatia a causas chamadas progressistas, o fenômeno é inverso.
O canhonaço da maioria da imprensa está focado em Carlo Maria Viganò, o arcebispo italiano que estrondosamente acusou Francisco de reabilitar e acobertar o agora renegado Theodore McCarrick, que perdeu o cardinalato depois de revelada, na justiça comum, uma vida inteira de sexo intensivo com seminaristas.
As forças conservadoras, minoritárias, mas em estado de militante rebeldia, fazem o exato oposto. Disseminam os abusos sexuais cometidos em massa, especialmente nos Estados Unidos; denunciam os “homossexualistas” – uma nova e autoexplicativa palavra – infiltrados em todos os escalões da Igreja e pedem até a abdicação de Francisco.
Também dizem que Viganò desapareceu do mapa para se proteger e está sendo perseguindo pela sinistra Santa Allianza, o serviço de inteligência do Vaticano, também conhecido pela magnificamente branda designação de A Entidade.
Como Viganò consultou vários vaticanistas de tendência conservadora sobre a elaboração de seu “testemunho”, o documento em que acusa gravemente o papa, e como vaticanistas adoram falar sobre seus contatos nos mais famosos corredores do poder do mundo, existe até uma reconstituição de seus últimos momentos fora da clandestinidade.
A fonte é Marco Tosatti e o relato apareceu no New York Times. Na última vez que se viram, Tosatti tentou beijar o anel do arcebispo, em sinal de “respeito por sua autoridade”, mas Viganó, com lágrimas nos olhos, não deixou.
“Agora que terminei, posso ir embora. E deixar Roma também”, disse o acusador do papa.
“Para onde?”, perguntou Tosatti.
“Não vou contar, para que você não tenha que mentir quando eles perguntarem. E vou desligar o celular também.”
Ambos tinham convicção de que seus celulares estavam grampeados.
O caso do juiz Kavanaugh, que precisou tirar as duas filhas pequenas da sala de audiências do Senado quando os xingamentos de militantes na plateia ficaram mais pesados, pode ter grandes consequências para a presidência de Donald Trump e até virar filme, como aconteceu com Anita Hill.
Mas ninguém faz um drama sobre poder e intriga como o Vaticano.