Olhamos para a Argentina e não podemos deixar de ver o Brasil na celebração de uma Copa com total, absoluta, unânime e voluptuosa entrega.
E, num momento de suprema união nacional, também enxergamos as divisões políticas. Todo mundo quer um pedaço de Messi, o ídolo que conseguiu o prodígio de não se definir politicamente num país em que isso é muito mais difícil do que suportar os infartos em série provocados por Mbappé antes da vitória final.
Ao contrário de Maradona, Messi não tem Che Guevara tatuado no braço, não fez detox falso em Cuba e não saracoteia com chavistas. Em 2016, quando provocou uma crise nacional ao dizer que não jogaria mais, o sociólogo Pablo Alabarces comparou: “Messi não é um símbolo nacional popular, não é plebeu, não é um símbolo peronista e, para cúmulo, é mudo”.
Nada como o tempo para mudar as visões – inclusive a antiga concepção de que o herói da Copa ocupava algum lugar no espectro do autismo.
Enquanto o povo se esbaldava na felicidade incomparável do tricampeonato, os políticos, como sempre, tramavam.
A seleção deveria ou não ir à Casa Rosada?
O presidente Alberto Fernández, conceitualmente pouco peronista pela imagem morna, ofereceu o que o jornal Clarín chamou de “recepção sóbria”: os jogadores iriam à Casa Rosada, receberiam os agradecimentos oficiais e apareceriam sozinhos no mitológico balcão da sede presidencial. Algo similar ao que o presidente Raúl Alfonsín, este sim um político de cavalheiresca sobriedade, fez em relação aos campeões em 1986.
Aparentemente, o convite não foi aceito. Veremos hoje. Mesmo em pleno fervor comemorativo, houve leitores que se manifestaram de maneira bem veemente diante da ideia, horripilante, de que Fernández e companhia imitassem o ridículo de dEmmanuel Macron se jogando na foto com Mbappé.
“Com tantos ladrões lá dentro, ficaram com medo que roubassem a Copa”, escreveu um.
“Não se deixem usar por este desgoverno”, pediu outro.
Outra: “Que a política não suje o triunfo da seleção”.
Para encerrar essa parte: “Nós os conhecemos de cor. Quando estiverem no balcão, o gordo vai aparecer para comemorar”. E um chorinho: “Não à Rosada, este antro corrupto não tem nada a ver com a alegria que nos deram os jogadores profissionais, não políticos corruptos”.
Pois é, um clima bem parecido com o que existe no Brasil em matéria de divisão política.
A esquerda, claro, diz que é tudo uma conspiração da direita para “tirar a alegria do povo”. Um jornal dessa turma chegou a especular: “O que seria da vida de Lionel Messi se ao se aposentar do futebol declarasse que é peronista e assumisse um compromisso social? Haveria uma coincidência a mais com Maradona?”.
Nos bastidores, algumas fontes declaram um certo alívio, com receio de que as comemorações poderiam repetir o descontrole que houve durante o velório de Maradona, com invasão da Casa Rosada e quebra-quebra.
Os argentinos merecem comemorar com alegria esfuziante, exatamente como fariam os brasileiros. E sem os transbordamentos trágicos de alguns episódios de sua história.
Mas esperar que as rivalidades políticas dêem uma trégua seria demais.
A recepção de hoje promete ser apoteótica e quem tentar roubar a glória alheia tem muito a perder.