Para onde vai a guerra na Ucrânia e o que os Estados Unidos querem?
Lloyd Austin, o secretário da Defesa, deu uma escorregada e falou a verdade: Rússia fraca é um objetivo estratégico dos americanos
O secretário da Defesa dos Estados Unidos tem basicamente um cargo político e a tarefa fundamental de conseguir aquilo que não sai da cabeça dos militares — verbas —, administrar 1,3 milhão de tropas da ativa e conseguir a boa vontade do presidente.
Com 780 bilhões de dólares para gastar neste ano, Lloyd Austin, general de quatro estrelas da reserva, também tem uma guerra por procuração quase ideal: a Ucrânia, o lado mais fraco, impulsionada por armas, formação e informação dos Estados Unidos, está dando um baile no lado mais forte, a Rússia.
Sem colocar nem um único soldado americano em risco de vida, está conseguindo minar o mais tradicional adversário dos Estados Unidos.
É quase bom demais para ser verdade. E talvez por isso Austin tenha deixado escapar algumas palavras que, segundo os mandamentos da diplomacia, não deveriam ser ditas em público.
“Nós queremos ver a Rússia enfraquecida a ponto de não poder fazer o tipo de coisa que fez ao invadir a Ucrânia”, disse ele depois de atingir o atual ponto máximo da peregrinação de qualquer líder de país desenvolvido hoje: uma reunião em Kiev com o presidente Volodymyr Zelensky.
Manter a Rússia sangrando, por obra dos ucranianos, é uma grande vantagem estratégica — o que não significa que os americanos não vejam as desvantagens. Entre elas, obviamente, a alta instabilidade que uma guerra como essa provoca em todo o planeta, indo desde as turbulências estratégicas até o aumento dos preços dos combustíveis que muito provavelmente contribuirá para um desastre eleitoral no Partido Democrata na eleição legislativa de novembro. Os aliados europeus também vão penar se a guerra durar até o próximo inverno no Hemisfério Norte.
Isso significa que os malvados imperialistas provocaram o conflito, como dizem os antiamericanistas? É claro que não. A guerra na Ucrânia foi inteiramente gestada na cabeça de Vladimir Putin e, como uma Atenas ao contrário, só trouxe desastres para o mundo e para a própria Rússia.
O maior deles ainda está no plano das hipóteses: Putin, como aquele tio “esquisito” que tanta gente tem na família, não pode ser provocado a ponto de explodir. Ou seja, não pode perder demais. Precisa salvar as aparências com alguma coisa que possa apresentar como vitória, como a conquista do semicírculo da parte oriental da Ucrânia onde os russos têm avançado metodicamente.
Nas famílias, quando o tio problemático perde as estribeiras, arruína a ceia de Natal. No planeta Putin, o risco pode ser de uso de uma arma nuclear tática, hipótese que parecia impensável até recentemente.
Como um Kim Jong-un turbinado, Putin também está transmitindo os testes de lançamento de novas armas estratégicas, aquelas que podem atingir a Europa inteira e os Estados Unidos. O mais recente foi o míssil intercontinental apelidado no ocidente de Satã II, um leviatã que pode transportar dez ogivas nucleares ou mais à distância de até 18 mil quilômetros. É o suficiente para devastar países como a França ou o Reino Unido, os dois únicos europeus com armas nucleares, com um único ataque. Obviamente, a retaliação também arrasaria os centros estratégicos russos.
Putin colocou o arsenal nuclear russo na mesa exatamente para intimidar os países ocidentais e impedir uma intervenção direta, como uma zona de exclusão aérea, em favor da Ucrânia.
Com apenas a ajuda indireta, a guerra pode durar vários meses. Se os russos não tomarem a região de Donbas, onde agora estão focado, em um mês ou pouco mais, levarão outra invertida.
O tempo joga contra os dois lados, mas a Ucrânia tem mais a perder, principalmente em termos de impacto sobre a opinião pública global. Depois da reação em cadeia que provocou nas primeiras semanas, a guerra vai sendo absorvida e os problemas locais voltam a ocupar o centro das atenções. Como é da natureza humana, até os maiores horrores são normalizados depois que se tornam reincidentes.
O que pode acabar com a guerra? Uma vitória russa, que os ucranianos mostraram ser muito difícil; uma vitória da Ucrânia, na qual é impossível pensar sem o surgimento de um Mikhail Gorbachev no lugar de Putin, ou uma solução meio a meio.
A indiscrição de Lloyd Austin indica que o governo americano não tem pressa de promover um acordo? É uma alternativa razoável. Mas, quando surgirem as condições possíveis, também caberá aos Estados Unidos levar os ucranianos a ceder. Sem a ajuda americana, a resistência armada tem quase zero de sobrevida. Com ela, consegue resultados militares inacreditáveis. O secretário da Defesa britânico, Ben Wallace, deu ontem um balanço bastante digno de crédito, considerando-se sua posição: a Rússia já perdeu cerca de 15 mil homens em dois meses de guerra na Ucrânia.
Isso se chama deixar sangrar.