Para que servem os líderes numa crise?
Na que nos tocou viver, as respostas são variadas.
O maior líder espiritual do Ocidente, por exemplo, deveria ser o papa Francisco.
Mas o papa está alquebrado, no corpo e no espírito. Com voz fraca e quase ninguém em volta, celebrou uma missa de Domingo de Ramos depressiva e pouco inspiradora.
Que católico se sentiria confortado com as seguintes palavras: “Amar, rezar, perdoar, cuidar dos outros e na família e na sociedade, tudo isso pode certamente ser difícil. Pode parecer uma via crucis”.
Muito mais breve, a rainha Elizabeth tampouco foi um primor de eloquência, mas se saiu melhor.
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Clique e AssineEntre os lugares comuns habituais, os redatores de seu discurso à nação deram uma pirueta para evocar uma espécie de espírito comum que une gerações na capacidade de resistência.
Nem que for para a geração que tem um ataque de pânico quando o iPhone fica com a tela preta ou falta espirulina no Whole Foods para fazer o smoothie matinal.
“Espero que nos anos pela frente todos possam se orgulhar de como responderam a esse desafio. E os que virão depois de nós dirão que os britânicos dessa geração foram tão fortes quanto os das outras”.
É uma comparação que, evidentemente, remete aos tempos da II Guerra Mundial, com a população sob racionamento (100 gramas de presunto ou bacon por semana, um ovo) e, durante onze meses, bombardeios diretos contra os civis.
Os breves instantes de conforto dos muitos que ainda apreciam e respeitam a rainha foram rapidamente superados pela notícia de que Boris Johnson, depois de nove dias de quarentena com resultado positivo, havia sido internado.
Uma das muitas perversidades desse vírus é justamente a piora súbita que pode acontecer no meio do desenrolar da doença. Agora, ele está recebendo oxigênio, um sinal de agravamento com consequências em aberto.
A hospitalização de Boris Johnson ocorre justamente no momento em que o país, em diferentes níveis, caminha para o sinistro pico que engolfou a Itália e a Espanha num ciclo de morte que parecia sem saída, chegando perto de mil vidas perdidas por dia.
Ambos parecem estar retrocedendo lentamente desse processo, uma tendência positiva no meio de tanta desgraça.
Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, ao contrário, a curva só sobe.
Um péssimo momento para Boris sair totalmente de cena, depois de tentar comandar a crise trancafiando no número 10 de Downing Street, com a comida deixada no chão, em frente a porta.
A popularidade do primeiro-ministro disparou no fim de março, um fenômeno comum em tempos de crise, quando a tendência é de união nacional – e os cheques do governo estão chegando para tentar segurar o desastre.
Aconteceu o mesmo com Emmanuel Macron na França e como Justin Trudeau no Canadá.
O salto de Macron, que patinava no fundo do poço depois da eclosão dos “coletes amarelos” e das greves contra a reforma na previdência (alguém se lembra disso?), foi o mais notável. Uma pesquisa lhe deu 51% de confiança dos franceses.
O estilo intervencionista e declaradamente nacionalista demonstrado a partir da epidemia tira bandeiras típicas de sua adversária, Marine Le Pen.
Mas Macron tem até abril de 2020 pela frente até a eleição presidencial. Isso num momento em que não se sabe o que sobrará da economia, do sistema político e talvez até da civilização.
Se a transição for traumática, mas não catastroficamente destrutiva, estará em vantagem.
Donald Trump tem apenas os mais cruéis dos meses até novembro. A epidemia ainda vai fazer muito estrago e a economia estará longe de se recuperar.
A aprovação a ele subiu relativamente pouco, em comparação a outros líderes. Trump entendeu, com tropeços, que precisava mudar de rumo e tem um time forte tentando segurar a bomba na economia.
Mas está longe de se comportar como o comandante forte e confiável que pede sacrifícios aos cidadãos e eles ouvem.
Ninguém poderia imaginar que ele seria esse tipo de líder, estóico e inabalável. Ou muito menos empático.
Empatia é uma mercadoria valiosa nesses momentos. A capacidade de se identificar com o sofrimento do outro, numa hora em que o outro somos todos nós, tem um efeito emocional muito forte no comportamento coletivo
Dois governantes estão revelando que têm esse material. Um é o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte.
O advogado engomadinho encontrou o tom certo, entre equilibrado e emotivo, para pedir sempre mais e mais sacrifícios em plena mortandade na Itália. O índice de confiança nele subiu de 39% em fevereiro para 54% no fim de março.
Mais dado a floreios retóricos, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, é o campeão: 87% de aprovação, incluindo 70% entre eleitores republicanos.
Cuomo fala, fala, fala e fala, e ninguém acha que precisa calar a boca. Um fato raríssimo em Nova York, onde um cidadão de bons propósitos tentou sair na janela e cantar durante o isolamento, como fazem tantos italianos, e ouviu um típico: “Shut the f*** off”.
Não precisa traduzir.
Sociedades modernas são horizontais, capilares, espraiadas, movendo-se sempre para a autonomia e a individualidade.
Um vírus mudou tudo e vai mudar mais ainda. No momento, todo mundo precisa de ordem, organização, racionalidade e, se possível, alguma esperança.
Numa outra fase, muitos também poderão concluir que não precisam de um bocado de gente que posava de representante da massa, seja na política, seja em outras esferas de influência.
Na homilia do Domingo de Ramos, Francisco repetiu, do ponto de vista cristão, uma ideia que tem circulado muito, mas que vai circular muito mais.
“Queridos amigos, olhai para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias, não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles que se oferecem para servir os outros”.
Lembram-se de quando “servir os outros” era uma das definições da vida pública?
Quem transmitir essa Impressão vai se sair melhor no pós-vírus.