Donald Harris não foi no casamento da filha, não compareceu ao enterro da ex-esposa e não apareceu em nenhum evento de campanha da candidata democrata. Não existem sequer fotos recentes dos dois juntos.
O motivo está numa confluência de ressentimentos familiares profundos e de pragmatismo político: o professor Harris, jamaicano que deu aulas em Stanford e se radicou nos Estados Unidos, é de esquerda, com visão marxista da economia, e atrapalharia a campanha dela.
As posições ultraprogressistas de Kamala são um dos maiores obstáculos a, no momento, uma vantagem incontestável nas preferências que garantiria sua vitória.
“Expurgar” o pai faz parte do esforço democrata, com enorme colaboração da maioria da mídia americana, que apoia Kamala.
E não só nos Estados Unidos. Hugo Marques, de VEJA, deu ontem uma notícia sensacional: um bom amigo de Donald Harris quando ele deu aulas na Universidade de Brasília, o professor Joanílio Teixeira, “alterou um organograma que fez de vários economistas e tendências de pensamento para retirar o pai de Kamala do grupo de marxistas”.
E por que fazer isso num ambiente no qual suas ideias são consideradas motivo de orgulho?
“ESCREVEU ALGUMAS COISAS”
“Eu tenho que ter certa cautela. Eu tenho muito medo de criar algum tipo de transtorno, a filha dele é quase presidente, ela tem muita chance, e ele não está muito envolvido na campanha dela, está se afastando”, declarou com honestidade o professor Joanílio.
“De certa maneira, ela ficou preocupada porque ele escreveu algumas coisas sobre marxismo. Muita gente associa isso a ser um marxista meio intransigente ou coisa parecida, o que não é verdade, mas pode prejudicar a campanha dela”.
Simultaneamente, uma reportagem do New York Times lembrou que Donald Harris, de 86 anos, “mora com a segunda esposa a apenas duas milhas da residência oficial da vice-presidente em Washington, mas está afastado há anos da filha e os dois raramente se falam”.
O jornal, intensamente comprometido em fazer campanha contra Donald Trump, afirma que, ao contrário das evidências que podem ser lidas nas obras do xará, “foi um crítico de esquerda da teoria econômica convencional, mas dificilmente seria marxista”.
Ao contrário, ele é facilmente identificável como tal. Os motivos para apagar convicções sustentadas ao longo de toda uma vida são eleitorais.
Por que Donald Harris não pode ser o que foi durante toda sua carreira intelectual? Por que a filha tem que ser julgada de acordo com as ideias do pai?
COTA DE HIPOCRISIA
É assim que funcionam as campanhas eleitorais. Ter um pai da esquerda marxista só prejudica Kamala e isso está sendo devidamente ocultado.
Envolver membros da família também é prática comum.
Por exemplo, muitos órgãos da imprensa destacaram a quase ausência de Melania Trump da campanha do marido, dando a entender que haveria uma crise conjugal.
Melania deu uma entrevista a Maria Bartiromo, da Fox, para divulgar o lançamento de um livro com sua assinatura, no qual defende explicitamente o direito das mulheres a decidir se levam adiante ou não uma gravidez. Como isso indica ideias próprias, inclusive que podem ser prejudiciais para o marido, tem sido escamoteado.
A ex-modelo de beleza deslumbrante não deve ser mostrada como uma mulher independente, só como uma boneca a desfilar para o público. Trump, um homem do show business, além de empreiteiro em Nova York, um ambiente definitivamente não conservador, também entra com sua cota de hipocrisia: nunca, antes que isso fosse politicamente vantajoso, apareceu como adversário do aborto.
E quem sabe até o trecho do livro de Melania tenha sido incluído de propósito?
COMPONENTE ELEITOREIRO
Em época de campanha eleitoral – e no contato com o mundo da política em geral – convém mobilizar todo o estoque de desconfiança.
Restrições ao aborto em alguns estados, depois de uma decisão da Suprema Corte que devolveu a eles o poder de legislar sobre o assunto, são um dos assuntos que mais prejudicam Trump, já em posição minoritária com o eleitorado feminino.
A própria Kamala deu de falar que tem uma Glock, para parecer mais palatável à fatia do eleitorado que teme as sucessivas declarações, antes da candidatura, contra a ampla liberdade de posse de armas nos Estados Unidos.
Em relação ao pai, existe também um aspecto pessoal complicado. Ele largou a família quando Kamala e a irmã, Maya, eram pequenas. A mãe, a cientista indiana Shyamala Gopalan, teve que batalhar sozinha e houve uma longa briga na justiça pela guarda das meninas.
Segundo o New York Times, Kamala ficou mal com o pai por não ter comparecido ao enterro de Shyamala, em 2009. “Cinco anos depois, o doutor Harris recusou um convite para participar do casamento da filha com Doug Emhoff, numa cerimônia pequena em Santa Bárbara, na Califórnia”.
VELHO MODELO
Sobre Emhoff: a campanha de Kamala vendeu a ideia, e a mídia pró-democrata a comprou entusiasticamente, de que ele é um “novo modelo de masculinidade” por aceitar sem dramas o papel preponderante da esposa.
Foram escamoteados detalhes mais de acordo com o velho modelo de sempre. Ele engravidou uma professora que trabalhava como babá dos filhos, durante o primeiro casamento.
Mais recentemente, Emhoff desmentiu uma história com três fontes do tabloide Daily Mail: a de que deu um tapa no rosto de uma namorada por achar que ela havia flertado com um manobrista ao saírem de um evento no festival de Cannes, em 2012. Antes da eleição de Kamala como vice-presidente, ele era dono de um escritório de advocacia especializado em entretenimento.
Campanhas eleitorais têm o dom de trazer o que de pior existe, tanto nos candidatos quanto nos seus articuladores. Poucas pessoas têm uma vida imaculada, sem quaisquer deslizes ou até coisa pior, que ganham outra dimensão quando divulgados em público. E como controlar a vida de parentes e cônjuges?
“CASCA GROSSA”
Pai marxista é um dos menores problemas. Melania Trump, por exemplo, ganhou um processo contra o mesmo Daily Mail por insinuar que ela tinha sido uma garota de programa de luxo na época em que foi modelo em Nova York.
“O mundo da moda me ensinou a ter casca grossa”, disse a ex-primeira-dama na entrevista recente.
As pesquisas continuam se inclinando por Kamala Harris (49,1% para ela, 46,8% para Trump, segundo a média do RealClearPolitics), mas os estados pêndulos, onde o resultado final é decidido, continuam embolados.
Donald Harris foi qualificado pela Economist como “combativo economista marxista” e seus livros estão à disposição de quem quiser ler para comprovar isso. Se for mais fácil um resumo, tem: no YouTube, feito pelo The Marxist Project, com detalhes de teoria econômica que pareciam enterrados no tempo.
Reescrever sua trajetória fica um pouco difícil.