Inteligente, preparado, equilibrado, racional, capaz de discutir e dominar qualquer assunto. As qualidades que transformaram Emmanuel Macron num fenômeno eleitoral em 2017, quando foi eleito presidente pela primeira vez impressionaram os franceses e o mundo – e foram até invejadas em países com líderes onde falta tudo isso.
O que aconteceu com esse político vindo do mercado financeiro, onde enriqueceu por conta própria e se tornou presidente – duas vezes eleito – sem nunca ter recebido um único voto antes?
Macron hoje parece aquele tipo de gente que rasga dinheiro: emenda um absurdo no outro.
O mais recente foi falar em guerra civil, um assunto gravíssimo que deveria ser deixado para ficcionistas como Michel Houellebeck ou generais da reserva – todos divisando essa possibilidade por causa do profundo racha com a população identificada com a religião muçulmana estrita muito mais do que com os valores republicanos franceses.
O precedente, nessa série, foi afirmar que não descartava a hipótese de mandar tropas para a Ucrânia. Vladimir Putin surtou e ameaçou com os horrores nucleares “países pequenos” com grande densidade populacional.
A França tem 290 ogivas nucleares e a Rússia, 4 380. Dá para perceber quem é pequeno.
MUNIÇÃO AO INIMIGO
O presidente francês quebrou uma das regras mais elementares de qualquer tipo de líder: nunca faça ameaças que não possa bancar.
Achava que iria intimidar um rufião como Putin?
Foi uma amostra do que viria pela frente. Sem nenhuma explicação racional nem qualquer tipo de consulta às lideranças de seu partido, rebatizado de Renascimento, ele resolveu dissolver a Assembleia Nacional e convocar novas eleições. Motivo: o resultado das eleições europeias, com um grande avanço da direita populista.
É importante lembrar que a eleição para o Parlamento Europeu não tem nada a ver com o funcionamento da política interna, embora obviamente reflita para que lado está pendendo a opinião pública.
Macron, portanto, quebrou a regra segundo a qual é melhor deixar o inimigo sem munição para o ataque.
Em vez disso, insuflou-o e a esquerda conseguiu se unir, por motivos unicamente antimacronistas, na Nova Frente Popular. A direita populista continuou em ascensão.
IMPERATIVO MORAL
Além do gesto voluntarioso, Macron também foi precipitado. Marcou a nova eleição para domingo que vem, com segundo turno – uma raridade francesa em matéria de eleições legislativas – em 7 de julho. Os políticos ficaram com pouquíssimo tempo de campanha e os organizadores dos Jogos Olímpicos, que começam em 26 de julho, sem fôlego.
Se sabia muito bem que seu partido está fadado a um lugar bem reduzido, como mostram as pesquisas, por que decretou a própria irrelevância? E como ficará no sistema misto francês, com presidente eleito pelo voto direto e primeiro-ministro saído do partido mais votado?
O argumento do imperativo moral teria que ser levado até as últimas consequências. Ou seja, se perder humilhantemente a eleição legislativa, Macron teria que renunciar. Tudo por uma situação precipitada que ele mesmo criou. Ele já rejeitou a hipótese, mas perderá não só força política como moral.
Sua última contribuição, ao invocar a guerra civil no caso de uma vitória da direita lepenista ou da esquerda que inclui um partido extremista como o França Insubmissa, arrematou a sequência de absurdos.
LIÇÃO DE COMPORTAMENTO
“Ele está sempre a postos para tocar fogo”, reagiu, corretamente – outra raridade -, o líder esquerdista Jean-Luc Mélenchon.
O novo e popular líder da direita nacionalista, Jordan Bardella, foi um exemplo de moderação: “Um presidente não deveria dizer isso”.
Quando o extremista dá lições de bom comportamento a coisa está feia.
Bardella pertence a um partido, o Reunião Nacional, que faz um esforço enorme para podar o radicalismo da época de seu fundador, Jean-Marie Le Pen.
O clima político na França no momento é de surto, com manifestações de diversas correntes de esquerda contra a direita lepenista – sem, claro, nem pensar nos motivos que levam 34% dos eleitores a declarar voto no Reunião Nacional.
FOGO NO CIRCO
Há ainda acontecimentos pontuais hediondos, como o estupro de uma menina de doze anos por ser judia. Ela havia dito a um namoradinho da mesma idade que era muçulmana para não ser discriminada. O menino, de família de origem portuguesa, convertido ao Islã, convocou dois colegas para praticar os abusos inomináveis.
Bardella não vai ser primeiro-ministro porque não tem aliados com quem formar uma maioria parlamentar. O mesmo vale para a Nova Frente Popular, que já está brigando antes mesmo de confirmar seu bom resultado eleitoral.
As incógnitas são enormes. Bem como a sensação de que se acabaram os tempos em que partidos de esquerda e de direita se alternavam no poder, um favorecendo mais os sindicatos, outro, os negócios, e assim avançava o sistema democrático que criou os países mais bem sucedidos do mundo.
Hoje, parece que o centro – o outro nome de partidos que conseguem conviver e se alternar sem trauma s- desapareceu e todos os lados partiram para a radicalização.
E Macron, o presidente certinho e racional, quebrou mais uma regra básica: não jogar gasolina no fogo. Agora, está ajudando a incendiar o circo.