Para qualquer jornalista, a melhor coisa do mundo é ter um governo para odiar. Além de criticar, malhar e vasculhar com olhos de garimpeiro em busca dos deslizes aos quais nenhum deles está imune, enquanto os a favor penam para dizer “vejam bem, não é exatamente assim”
Como aconteceu em tantos outros terrenos, Donald Trump bagunçou esse conceito fundamental.
Durante seus três anos e nove meses, a Fox News continuou a ser a exceção, a única voz a clamar no deserto, como aconteceu durante os dois mandatos de Barack Obama, só que com o sinal invertido.
Em vez de perder espectadores aborrecidos com os excessos de trumpismo, aumentou sua audiência.
Em todos os outros canais, acumulavam-se os ataques catárticos contra Trump, com um nível de agressividade que, no Brasil, pertenceria à antiga família do lacerdismo.
Na Fox, os americanos que não são contra o presidente – e 71 milhões votaram ele no dia 3 – encontravam uma ilha de resistência, o espaço onde as coisas bem feitas de Trump eram exaltadas e as mal feitas um tanto quanto, não de todo, escamoteadas.
Isso acabou com a eleição que Trump insiste em dizer que ganhou e tudo mundo mais diz que não, estatisticamente uma virada seria impossível, mesmo que quantidades razoáveis de votos recontados o favorecessem.
Durante a noticiário normal, Joe Biden é chamado de presidente eleito, embora não faltem políticos republicanos – na maioria com uma expressão próxima do pânico – expressando dúvidas, válidas ou imaginárias, sobre a legitimidade do processo eleitoral em determinados estados.
(O pânico decorre da possibilidade de incorrer na ira dos eleitores mais trumpistas, principalmente considerando-se que haverá nova votação para as duas cadeiras no Senado na Georgia – exatamente o estado que pode manter a maioria republicana ou derrubá-la).
À noite, quando as estrelas entram no ar, a coisa muda – foi o site The Intercept que comparou as diferenças.
Laura Ingraham, Tucker Carlson e Sean Hannity fecham ardorosamente com a versão da fraude eleitoral, cada qual no seu estilo.
O mais eficaz provavelmente é Carlson, um incendiário à moda populista – tão violentamente contra o Partido Democrata quanto contra as alas tradicionais do Republicano.
Muitas vezes, Carlson parece inclinar-se por um hipotético terceiro partido. Ou uma outra emissora, uma concorrente mais à direita da Fox.
Público talvez não seja o problema. A Newsmax, uma espécie de Fox das antigas, pode ser uma alternativa – sua audiência já está aumentando desde a eleição.
Os sites mais trumpistas falam pura e simplesmente em boicote à emissora de Rupert Murdoch.
“A Fox News ri da nossa cara, zomba de nós e nos trai outra vez, mais outra vez, e mais outra”, escreveu John Nolte no Breitbart.
Um dos grandes motivos da revolta – embora esta tenha raízes mais antigas – foi porque o apresentador Neil Cavuto interrompeu as declarações da porta-voz de Trump, Kayleigh McEnany, quando ela acusava os democratas de fraude eleitoral.
“A não ser que ela tenha mais detalhes para sustentar isso, não posso em boa fé continuar a mostrar isso”, disse Cavuto.
Interromper uma porta-voz do presidente, ao contrário de esperar que ela terminasse e aí contrapor os argumentos contra suas declarações, foi um divisor de águas, a prova que faltava da “traição”.
A Fox News foi uma ideia espetacular de Roger Ailes, que morreu em 2017. Murdoch, com seu gênio para o negócio das notícias e do entretenimento – quando não as duas coisas juntas num pacote só – bancou a proposta vencedora: ir buscar o público mais à direita, alienado pelo crescente progressismo dos canais tradicionais.
O público visado retribuiu com fervor e a Fox se tornou a campeã de audiência dos canais noticiosos a cabo.
Ailes criou equipes com mulheres lindas, de decote, saias curtas e quantidades industriais de maquiagem, e homens com o tipo de masculinidade que pode facilmente se transformar em supertóxica – o que de fato aconteceu, considerando-se o número de processos por assédio sexual contra várias das estrelas do canal.
O caso do próprio Ailes virou filme, Bombshell, com Charlize Theron, Nicole Kidman e Margot Robbie – talvez a mais concentração de beleza feminina da história recente do cinema, apesar da qualidade cinemática duvidosa.
Com 89 anos e 18 bilhões de dólares, fora um casamento de inverno com a última ex oficial de Mick Jagger, Jerry Hall, Murdoch vendeu recentemente para a Disney o braço de entretenimento da Fox e ficou só com os produtos jornalísticos – do Wall Street Journal ao New York Post, entre outros.
As divisões políticas dos Estados Unidos espelharam-se em sua própria casa. Em julho, seu filho James Murdoch deixou a empresa da família, a News Corp.
Enfiando o punhal até o cabo, deu uma entrevista ao New York Times dizendo que “a concorrência entre as ideias não pode ser usada para legitimar a desinformação”.
Murdoch nunca teve uma opinião muito elevada de Trump, que o cortejava desde os tempos em que era um incorporador imobiliário meio folclórico, dado a golpes publicitários a favor de si mesmo.
Mas, talvez sob a influência de sua própria experiência, a de um obscuro empreendedor que saiu da Austrália para se tornar um magnata da imprensa na Inglaterra e nos Estados Unidos, nunca gostou do modo como “Trump é esnobado e tratado como um palhaço” pelas elites.
Eleito presidente, contra todas as expectativas, Trump passou crescentemente a usar o programa matinal da Fox como seu próprio canal, ligando com frequência quase diária para dar entrevistas por telefone.
A qualquer sinal de crítica, ou de mínimo desvio da linha do partido, estrilava.
Sobre a briga atual, tuitou: “A audiência diurna despencou completamente”.
“É uma pena ver isso acontecer, mas eles esqueceram o que fez o seu sucesso, como chegaram lá. Esqueceram-se da galinha dos ovos de ouro”.
Uma das especulações sobre seu futuro depois da Casa Branca é que talvez se dedique a criar – com dinheiro dos outros, claro – seu próprio império jornalístico, digital como exigem os tempos atuais.
Trump contra Murdoch certamente seria uma batalha épica, uma espécie de Godzilla contra King Kong do mundo das comunicações.