“Foi coisa de uma cura de província”, diz, com falsa modéstia, dom Víctor Manuel Fernández, o arcebispo argentino que está causando um rebuliço na Igreja desde que foi nomeado pelo papa Francisco para o comando do Dicastério da Doutrina da Fé. Ele terá a missão de preservar a doutrina revelada por Deus nos livros sagrados, inclusive pelas palavras de seu próprio Filho, segundo acreditam os fieis.
Não é preciso ser da corrente conservadora nem sequer católico praticante para se perguntar por que o papa argentino escolheu um religioso tão esquisito, autor de um livro intitulado Cura-me com sua Boca. A Arte de Beijar, cheio de elegias aos beijos apaixonados num tom vagamente parecido com o de um Neruda menos poeticamente privilegiado.
“Tucho, o beijoqueiro”, ironizam adversários conservadores, usando o apelido pelo qual o arcebispo é amplamente conhecido. Outros, falam em Deep Throat, evocando o clássico pornográfico para trechos como “o beijo penetrativo é quando você suga e chupa com os lábios. O beijo penetrativo é quando você enfia a língua. Cuidado com os dentes”.
Há, como se vê, amplo espaço para ironias. O livro data de 1995 e “não foi escrito com base na minha própria experiência”, esclarece dom Tucho — ainda bem que ele deixa um espaço para o celibato —, embora o entusiasmo com o elogio do beijo pareça indicar algum conhecimento de causa.
“O beijo é amor feito carne, o ponto onde confluem todas as características do amor humano: ternura, paixão, alegria, admiração, doçura, força, descanso, descarrego, entrega, comunicação”.
Dá vontade de sair beijando muito, mas os especialistas enxergam algo de um dos polêmicos textos de Francisco, o Amoris Laetitia, no elogio ao beijo e em detalhes como “se pode fazer sexo, aliviar instintos e satisfazer uma necessidade, mas se não há beijos de verdade — profundos, ternos e frequentes — é porque o amor já não existe ou está moribundo”.
Curiosamente, também há algo do hábito bem sacerdotal dos sermões: beijo não é uma prática que precisa ser incentivada. Ou rola ou não. Se não for espontâneo, todo o resto fica postiço. Talvez a falta de prática de Tucho no assunto o tenha levado a “promover” algo que só vale quando é natural — existe algo mais falso do que um beijo planejado, construído ou antieroticamente encenado com base nos conselhos de um padre?
A obra “não contem nenhuma heresia ou erro” e as críticas partem dos “setores ultraconservadores que odeiam o papa argentino”, defende-se Tucho. Ele também diz que num dos trechos mais entusiasmados do livro — “Como Deus foi tão impiedoso para dar-te esta boca? Não há quem resista, bruxa, esconda-a” — a palavra original em espanhol bruja foi perversamente traduzida com um sinônimo chulo para prostituta.
Curiosidade: quem usa palavras chulas no discurso habitam é o arcebispo, acostumado a falar no estilo popular argentino, cheio de palavrões.
A influência do arcebispo é vista não apenas no elogio ao encontro sexual conjugal, mas em trechos da exortação apostólica Amoris Laetitia que abrem o sacramento da comunhão para casais que tenham tido casamentos anteriores. Parece uma bobagem, à luz da sociedade contemporânea, mas os tradicionalistas se horrorizam com o que consideram uma sabotagem a um sacramento que deveria ser intocável ao estabelecer, diante de Deus, a indissolubilidade dos laços matrimoniais, exceto no casos de dissolução carimbados pela Igreja.
Como Francisco, dom Tucho é cheio de ressentimentos — poucas coisas se comparam, em animosidade, aos embates entre religiosos de tendências diferentes. Faz parte, com alacridade, do grande dilema da Igreja: modernizar-se em nome da retenção dos fieis ou manter a tradição e os rituais tão entranhados na psique coletiva do catolicismo?
Nenhuma das coisas parece estar funcionando, mas o papa argentino, com 86 anos e amplo conhecimento da própria finitude, está batendo o pé e aumentando as intervenções que promovem a versão progressista.
Mas poucas coisas se comparam a nomear o arcebispo da ala mais à esquerda para um cargo que já foi do papa Benedito XVI e de outro alemão, dom Gerhard Müller, um dos mais declarados críticos de Francisco.
“A decisão de quem se tornará prefeito da principal congregação que assiste o Pontífice Romano em seu magistério universal pertence apenas ao Santo Padre”, disse o cardeal Müller. “Isso não exclui a preocupação de muitos bispos, padres e fieis de todo mundo. Eles têm o direito de se expressar livremente”.
“A obediência religiosa devida por todos os católicos ao episcopado universal, e especialmente ao papa, se refere apenas às verdades sobrenaturais da doutrina da fé e da moral”.
Dom Tucho diz que é doutor em teologia e seu livro de “cura de província” foi escrito há 37 anos.
Estaria o papa argentino querendo abrir caminho a um sucessor? A um herdeiro de São Pedro que ficou conhecido por um tratado beijoqueiro? No National Catholic Reporter, escreveu Richard Gaillardetz: a nomeação de dom Tucho é a mais importante, no nível hierárquico da Igreja, dos dez anos de pontificado de Francisco. Ele atribuiu as críticas ao “estilo de teologia mais pastoral” do arcebispo – todo mundo sabe o que significa isso.
“Estejam alertas e vigiem. O vosso inimigo anda ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar”, disse a rocha sobre a qual foi erguida a Igreja.
Muitos lados nessa guerra interna da Igreja certamente pensam isso sobre o campo oposto.