Articulada, jovem e bonita, a deputada Coralie Dubost era vice-líder do partido de Emmanuel Macron, República em Marcha, e uma boa operadora para a eleição parlamentar de junho, universalmente chamada de “terceiro turno”, diante da possibilidade de que o governo perca a maioria e o presidente enfrente a humilhação da coabitação.
“Ouvi maus conselhos e fui burra, não sou golpista”, penitenciou-se a deputada pela região de Hérault ao ser obrigada a renunciar diante das provas, levantadas pelo site Mediapart, de que ela apresentava notas de despesas exorbitantes com roupas.
Em outubro de 2018, por exemplo, gastou 3 300 euros – umas seis vezes a mais em reais. Em lojas que vendem calcinhas e sutiãs, foram 400 euros. Como são marcas populares, na média dos 20 euros a peça, dá um bocado de lingerie.
É claro que houve despesas em restaurantes de praia onde a hipótese de reuniões de trabalho parece extremamente remota – mudam as nacionalidades, os vícios permanecem os mesmos.
Mal Coralie renunciou e já apareceu o nome de outra deputada do partido de Macron, Patricia Mirralès, com mais notas de despesas “mirabolantes”, incluindo 1198,80 euros para a recuperação do disco rígido do computador da filha, Ela também apresentou despesas com roupas da Zara, a rede popular onde mandou um assessor fazer compras.
São fatos episódicos, mas que acontecem num momento altamente vulnerável para Macron. Depois de ser reeleito, com uma bela marca de quase 59% dos votos, ele precisa fazer um tremendo esforço para não virar um presidente decorativo.
A França tem um sistema político misto, com presidente forte e primeiro-ministro. Mal dá para notar quando o partido do presidente tem maioria, como acontece atualmente. O primeiro-ministro é apenas uma espécie de executivo chefe. Cumpre as decisões descidas do Olimpo onde Júpiter domina todo o poder – a referência mitológica virou lugar comum desde que Macron usou a analogia para descrever seu estilo de governo.
Quando a oposição faz maioria na Assembleia Legislativa e ganha o direito de nomear o chefe de governo, o primeiro-ministro vira uma figura importantíssima, com um programa divergente da política do presidente.
Imaginem um governo em que Jair Bolsonaro fosse o presidente e Lula o primeiro-ministro. Ou vice-versa. É esse tipo de coabitação que pode virar um casamento de conveniência celebrado no sétimo círculo do inferno.
E o primeiro-ministro em potencial é um sujeito com todos os defeitos do populismo de esquerda. Jean-Luc Mélenchon ficou no primeiro turno apenas 400 mil votos – ou 1% – atrás de Marine Le Pen.
Na posição de liderança, outros partidos de esquerda, inclusive o dizimado Partido Socialista, aceitaram, como bons carneirinhos, fazer uma frente de esquerda com a França Insubmissa de Mélenchon.
Todo mundo sabe que não existem inimigos mais ferozes do que esquerdistas de diferentes tendências, mas Mélenchon tem o dom de tirar o pior das pessoas e das ideias.
O pior, para socialistas tradicionais – na verdade, social-democratas com um toque francês – é o euroceticismo de Mélenchon. Sem falar em suas simpatias por Vladimir Putin. E para não mencionar promessas autodestrutivas como um congelamento geral dos preços dos produtos de primeira necessidade.
Ou alucinações como dizer que a epidemia de obesidade será combatida pagando bem aos agricultores para que “cultivem produtos de boa qualidade sem pesticidas” – uma garantia de que faltaria comida na mesa dos franceses.
Quanto mais Mélenchon, filho de espanhóis nascido no Marrocos, se exibe para um público apaixonado com declarações irresponsáveis, mais é aplaudido. Quando evoca o anticapitalismo, o público delira. Dizer que enfrentará a inflação “sem recorrer aos mecanismos da economia de mercado” é considerado profético.
Como um populista latino-americano, ele é capaz de falar durante horas, de improviso. Algumas coisas fazem sentido, como evocar o nível de pobreza de “quarto mundo” em determinadas camadas da sociedade francesa.
Embora seja triste pensar que a França, com uma nobre linhagem de líderes esquerdistas, produziu um político desse nível, Mélenchon tem os votos e um momento favorável: a inflação que corrói o padrão de vida é uma parteira histórica de salvadores da pátria.
Macron sabe que tem um estilo elitista e que muitos franceses, à esquerda e à direita, sentem ojeriza por ele.
Para abrandar a imagem de riquinho prodígio, já deixou de usar o relógio Cartier (modelo Tank) e mudou de alfaiate (abandonou a chiquérrima maison Cifonelli, onde um terno sob medida começa em 5 500 euros).
Agora, está mudando o nome do partido: a República em Marcha virou Renascimento.
Quando foi eleito pela primeira vez, conseguiu um feito maior ainda com a maioria parlamentar conquistada por um partido criado literalmente do nada. Há pesquisas indicando que ele deve conservar a maioria, mesmo com uma esquerda unida, pelo menos em parte, e com uma direita que agora avança no território parlamentar, o que nunca foi o forte de Marine Le Pen e seus seguidores.
Tudo o que não precisa é de deputadas com despesas absurdas como no “escândalo das calcinhas”. A percepção é vital e, hoje, 37% dos franceses acham que Jean-Luc Mélenchon e a esquerda unida representam mais a oposição a Macron do que Marine Le Pen (33%).
Na França, até a direita é de esquerda e Marine Le Pen defendeu durante a campanha presidencial posições que não ficariam nada estranhas na boca de Mélenchon, principalmente no que toca ao Estado interventor e ao protecionismo.
“É nos momentos mais difíceis que a França mostra o seu melhor”, disse Macron ao prestar juramento para o segundo mandato, no sábado, ao som de Handel.
Pandemia, guerra na Ucrânia e preços inflacionados são brincadeira perto do que seria um governo chefiado por Jean-Luc Mélenchon.