“Às vezes, eu sou Deus, se digo que um homem morre, morre no mesmo dia.” A frase de Pablo Escobar era brutalmente real. Ele tinha o poder de dizer quem ia morrer e quem viveria. Na maioria das vezes, escolhia a primeira opção. Em vários sentidos, o traficante colombiano foi um precursor, um gênio maligno do crime com um fraco pela publicidade. Vivemos hoje na América Latina uma realidade em que múltiplos Pablos, embora menos dotados para a autopromoção, na prática tomaram o poder. O narcotráfico deu um salto qualitativo. O poder do dinheiro das drogas corrompe e seu poder absoluto corrompe absolutamente. O pior efeito é a contaminação das instituições, através de agentes do Estado — policiais, militares, promotores, juízes e políticos eleitos. Quando caem as barreiras das próprias forças que deveriam proteger a sociedade, é a vitória do modelo Pablo Escobar: está tudo dominado.
“O pior efeito é a contaminação das instituições, por meio de agentes do Estado”
Países que eram bastante seguros fizeram o caminho inverso e se transformaram nos últimos e pouquíssimos anos em fornalhas incandescentes do crime onde a guerra entre quadrilhas salpica de sangue as listas de homicídios. Foram por esse caminho a Argentina, onde se voltava de madrugada para casa sem nenhuma preocupação, o ordeiro Chile e o tranquilo Equador, tão seguro que havia virado um receptor dolarizado de aposentados americanos. Agora, o espantoso assassinato de um candidato à Presidência, Fernando Villavicencio, evocou os piores momentos da Colômbia na era Escobar. Várias consequências dessa elevação de patamar do crime estão sentidas. Uma delas é o apoio maciço a medidas fora do padrão da estrita legalidade que alimentam os 90% de popularidade do presidente de El Salvador, Nayib Bukele. A ideia de encarcerar absolutamente todos os bandidos, mesmo atropelando garantias jurídicas, é tão popular que Bukele já tem imitadores. O argentino Javier Milei concentrou sua mensagem ultralibertária na economia, mas também propôs ironicamente o que chamou de uma “nova doutrina de segurança: quem faz, paga”. Teve 30% dos votos nas eleições primárias, antecedidas por um clima de enorme comoção nacional pelo caso Morena Domínguez, a menina de 11 anos morta por bandidos de motocicleta por causa de um celular. É possível combater o crime no plano imediato e promover, a prazo mais longo, o desenvolvimento econômico que dá mais opções aos vulneráveis ao apelo da bandidagem? A alternativa a não fazer isso é virar um narcoestado, como a Venezuela ou agora, tristemente, a Bolívia.
O México é um caso único de luta pela alma da nação, com o poder avassalador dos traficantes alimentado pela proximidade com o maior mercado do mundo. Os métodos de seus cartéis, numa ironia suprema, eram criticados por Escobar: “Os narcos mexicanos não têm bandeira, só matam e matam e matam e não sabem para onde vão”. O megatraficante também chegou a dizer que, entre seus próprios crimes, só se arrependia pelo “das mulheres que matamos” — as adolescentes cujos corpos seviciados brotavam nas estradas de Medellín depois que se suspeitou que, entre as meninas virgens atraídas para servi-lo, havia uma que cooperava com a polícia — e “o do doutor Luis Carlos Galán”, o candidato presidencial colombiano morto num comício em 1989. O Equador tem agora seu próprio Galán num caso que envolve cartéis, sicários colombianos e interesses políticos. É a pior droga que pode haver.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855