Eva Perón tinha 33 anos e pesava 37 quilos quando apareceu em público pela última vez, desfilando em carro aberto na segunda posse do marido. Usava um casaco de vison com um de seus fabulosos colares com pedras preciosas em formato de sol, o símbolo argentino. Por baixo da roupa, um colete feito especialmente para mantê-la de pé: o câncer de útero já havia se espalhado pelos ossos, provocando dores só suportadas com morfina. Teve uma vida extraordinária, e uma morte tão ou mais espantosa, que não seria necessário acrescentar nada para pô-la no alto do panteão de personagens argentinos alucinantes, do Che a Diego, de Gardel a Borges, todos dignos de ser chamados por um nome só, gravitando num universo no qual, dependendo de nossas paixões, cada um deles já justificaria a existência da Argentina.
Seus descamisados a tratavam como Santa Evita, o título do insuperável romance de Tomás Eloy Martínez e da minissérie baseada nele, e seus inimigos usavam o brutal feminino de cavalo para classificar uma ex-atriz do ramo do entretenimento noturno que usava vestidos Dior para se pavonear diante dos inimigos de classe — e o fornecimento de papel de imprensa para controlar os jornais que não bailavam conforme a música peronista. Não foi uma coisa nem outra, mas desde que Madonna a ressuscitou para o mundo, numa tendência retomada agora com os setenta anos de sua morte, vem tendo seu papel histórico distorcido para pintá-la como feminista que confrontava o marido. Historiadores sérios, ao contrário, retratam a deferência com que ela se colocava diante de um “Juan” que entendia o valor político da esposa e a havia convencido da importância da aprovação do voto feminino.
“Os inimigos usavam o brutal feminino de cavalo para classificar a ex-atriz de casas noturnas”
O historiador italiano Loris Zanatta, talvez o melhor estudioso da obsessão caudilhesca da América Latina, tem uma visão crítica do fenômeno Evita e dos embates que ela continua a provocar. “Creio que em Eva e no evitismo estão as raízes culturais mais profundas da decadência argentina, inclusive mais do que em Perón”, escreveu ele. Explicação: enquanto Perón e seu movimento tiveram flexibilidade para se adaptar aos momentos históricos, gerando figuras pragmáticas ou simplesmente malandras, Eva foi messiânica, fanática e “pobrista”.
“Nada na mentalidade econômica evitista promove a autonomia pessoal, a mobilidade social, a iniciativa individual, tudo fomenta a dependência, o oportunismo, o clientelismo; nada é orientado a crescer e produzir, tudo a ‘ajudar’ e distribuir.” Dificilmente haveria definição melhor da praga populista que mantém apertadas as amarras das quais a Argentina, e a América Latina em geral, não conseguem se livrar.
“Essa mulher é minha”, dizia o coronel Carlos Eugenio de Moori Koenig, enlouquecido pelo cadáver perfeitamente embalsamado de Evita que havia sequestrado e mantinha em posição vertical, inclusive para a prática de atos “anticristãos”, segundo seus próprios companheiros de Exército. Na verdade, Evita pertence ao mundo dos mitos. Nem a impressão de seu rosto nas notas de 100 pesos, lançadas em 2012, conseguiu acabar com ela — embora o governo argentino tenha dado o seu melhor para fazê-lo. Hoje, são necessárias quase duas “evitas” para comprar 1 dólar.
Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801