“A Rússia se beneficiou do nosso ataque”, disse, com orgulho, Khaled Mashal, o ex-líder do Hamas que vive no exterior e continua a promover a organização. “Ele desviou as atenções dos Estados Unidos da Ucrânia”.
Mashal estava tão orgulhoso que confidenciou: “Os russos nos disseram que o que aconteceu em 7 de outubro será ensinado nas academias militares deles”.
Em vários aspectos, Mashal tem razão. Putin está gostando muito de ver a fogueira do Oriente Médio consumindo recursos, humanos e materiais, dos Estados Unidos, enquanto a Ucrânia simplesmente desaparece do noticiário.
Em outros, o quadro é mais complicado. Vejamos o caso quase inacreditável da multidão de algumas centenas de homens que se congregou no aeroporto da capital do Daguestão para “caçar judeus”, buscando passageiros que já estivessem no terminal ou num avião procedente de Telavive — os tripulantes tiveram a presença de espírito de mandar os passageiros que já desciam s escada voltar para o avião, trancaram as portas e evitaram o pior. Circulam informações de que depois os passageiros israelenses foram retirados de helicóptero militar.
Os manifestantes queriam vingança pelo bombardeio de Gaza e entoavam o grito de guerra adotado pelos jihadistas, “Allahu Akbar”, Alá é grande ou o maior.
O Daguestão é uma das sete repúblicas de maioria muçulmana da Federação Russa e tem um movimento fundamentalista forte. A mais conhecida da região é a Chechênia, onde uma insurreição separatista de inspiração nacionalista e religiosa foi barbaramente reprimida. Vieram dessas repúblicas os responsáveis por atentados terroristas de grande repercussão em países ocidentais, como o da maratona de Boston, em 2013, e o hediondo assassinato, por decapitação, do professor francês Samuel Paty, em 2020. Ou seja, se militantes radicalizados atacam os próprios países que lhes deram refúgio, imaginem o que fariam na Rússia – se pudessem.
É por isso que não é bom para Putin ter homens ensandecidos gritando “Allahu Akbar” e pedindo sangue em domínios que ele considera seus. A raiva dirigida contra os judeus pode facilmente se voltar contra os infiéis russos.
Outro elemento fundamental para atrapalhar a cabeça dos que olham um mundo de uma nota só: a Rússia de Putin foi fundamental para derrotar o fundamentalismo do mesmo teor do Hamas — originário da matriz egípcia da Irmandade Muçulmana — na Síria. Agora, são os melhores amigos do mundo, tanto que Moscou abriu as portas para um enviado do Hamas, uma abominação. Podem voltar a se deparar em campos opostos? Perfeitamente.
O mesmo jogo duplo é feito pela China. Quando o islamismo radical começou a se disseminar por Xinjiang, província onde a população é da etnia turcomena, de religião muçulmana, a repressão foi brutal. Os assassinatos a facadas de moradores Han, o grupo populacional majoritário da China, foram castigados com punições coletivas. Práticas e tradições, como os cânticos nas mesquitas e a escolha dos líderes religiosos, foram proibidas. A repressão aos uigures se mantém até hoje, com campos de reeducação denunciados como centros de abuso e repressão. Não houve mais atentados.
A China também é um país em que não se sai gritando “Allahu Akbar” pelas ruas.
Khaled Mashal, que vive no bem bom do Catar, pode ter até ultrapassado um pouco dos limites, em seu entusiasmo, quando disse que “os chineses estão pensando em executar um plano em Taiwan” similar ao do Hamas em Israel em 7 de outubro. “Os árabes estão dando uma aula magna ao mundo”, exibiu-se.
No Daguestão, sessenta envolvidos no incidente no aeroporto foram presos. Praticamente não há mais judeus na região, depois de uma história de mais de mil anos. Algumas cenas lembrariam uma paródia de Borat, se o assunto não fosse tão trágico. A “caçada” no aeroporto foi precedida pelo cerco a dois hotéis, que estariam “cheios de judeus”. Os locais foram apedrejados e um deles colocou um cartaz dizendo “É estritamente proibida a entrada de estrangeiros (judeus)!!!”.
É de assustar o mundo todo — e Putin não está isento desse susto.