Mais uma vez: contra tudo e contra todos, Trump vira o jogo
A vitória reflete grandes mudanças no eleitorado, mas também a capacidade do presidente eleito de enfrentar obstáculos que pareciam impossíveis
Múltiplos processos na justiça? O pessoal praticamente esqueceu. Taylor Swift, Oprah Winfrey e Michelle Obama, as mulheres mais influentes dos Estados Unidos? Foram sobrepujadas. O constante estado de, mais do que oposição, promoção do ódio pela maioria esmagadora da mídia, que não apenas explorava 24 horas por dia os muitos erros de Donald Trump, mas inventava defeitos imaginários? Mesmo destino do mundo universitário, dos economistas Prêmio Nobel, dos nomões da alta burocracia e até dos estarrecedores 2 bilhões de dólares que inundaram a campanha de Kamala Harris.
E, acima de tudo, os problemas em que Donald Trump foi tão pródigo em criar para si mesmo, como é de sua natureza, dizendo que haitianos estavam “comendo cães e gatos” numa cidade do interior ou que Kamala tem “QI baixo”, o que soou como ofensa às mulheres cujos votos deveria cultivar.
Para quem prefere ver os grandes movimentos, indo além de fatores episódicos, ficou claro que houve uma inversão categórica no eleitorado.
O Partido Democrata, tradicionalmente representante dos subordinados, funcionários, operários, descendentes de imigrantes, católicos, latinos e negros, em contraposição aos chefes, patrões e wasps em geral – brancos das igrejas protestantes tradicionais -, transformou-se no porta-voz dos identitários, da classe média formada nas universidades onde se prega que o Hamas é o mocinho e Israel o bandido, dos jovens que celebram quando garotas enfrentam transexuais parrudos no esporte, dos milionários que abraçam causas progressistas como se isso fosse a justificativa para suas fortunas.
BONDADE E ALEGRIA
O povão começou a ir para o Partido Republicano – ou pelo menos a versão trumpista do partido. Enquanto requintados comentaristas ensinavam à plebe ignara que a economia estava indo muito bem – e de, fato, os números são animadores -, eleitores comuns comparavam: a gasolina a 1,3 dólar o galão da era Trump tinha chegado a 5 dólares, a taxa de juro de 0,25% (parece irreal) atingiu no pico 5,5%, inflação de alimentos, 20,3%, aluguéis, 30%.
Adiantou propalar que a inflação caiu para 2,4% e o desemprego para 4% e o crescimento do PIB foi de 2,5% no ano passado, muito melhor do que o de todos os países avançados, com exceção da China?
Kamala Harris, com sua embalagem fenomenal e treinada pelos marqueteiros para encarnar a figura que promoveria a união, a bondade e a mais pura (e centrista) alegria (apesar daqueles vídeos do passado, quando mostrava suas convicções ultraprogressistas) não conseguiu se desvincular de Joe Biden e sua aprovação pífia.
Como vice-presidente, teve influência zero no governo Biden. Como candidata a substituí-lo, teve que carregar a cruz conjunta, mesmo chegando ao ponto em que seus diretores de campanha proibiram terminantemente que Biden subisse em qualquer palanque.
MUDANÇA OU MAIS DO MESMO
O folclórico James Carville foi um dos primeiros democratas conhecidos a dizer que Biden, em acelerado declínio cognitivo, tinha que cair fora e os democratas precisavam propor algo novo ao país. Tinha razão. Com Biden, a derrota já estava traçada. Com Kamala, houve momentos de esperança e muita torcida da mídia (78% de cobertura positiva para ela; 85% de negativa para Trump), alimentada por pesquisas que pareciam dar um fôlego maior do que revelou ter.
O mesmo Carville do famoso “É a economia, estúpido”, colocou como regra número um do que devera ser o foco da campanha vitoriosa de Bill Clinton contra George Bush pai que era uma batalha entre “mudança e mais do mesmo”.
Em muitos aspectos, Kamala seria um Biden II, ou mais do mesmo. Donald Trump, o homem mais falado dos Estados Unidos, com quatro anos de experiência nas costas e um episódio vergonhoso como o quebra-quebra no Capitólio, conseguiu capturar o lugar do candidato da mudança. Economia e o descontrole na fronteira com o México foram as colunas mestras.
Trump fez promessas que soam absurdas, como a de derrubar a taxa de juro (não tem poder sobre o Federal Reserve e o presidente que odeia, Jerome Powell) e que a gasolina estará custando 50% mais barata dentro de exatamente um ano.
Pode ser que os seus eleitores, na famosa definição de Salena Zito por ocasião da primeira vitória, “o levaram a sério, mas não ao pé a letra” (enquanto a mídia antitrumpista, mais uma vez, o levava “ao pé da letra mas não a sério”). Imune a definições simplistas, o diversificado eleitorado que votou em Trump está hoje comemorando, não cobrando promessas de campanha. Mas essa hora, evidentemente, chegará.