O presidente Lula da Silva costumava dizer uma frase que achava esperta para definir adversários e por causa de seu autor, um cantor especialista em relações exteriores: o Brasil “não fala fino com os Estados Unidos e nem grosso com a Bolívia” A Venezuela conturbou essa visão autocomplacente. O governo Lula fala finíssimo com o companheiro de Nicolás Maduro, na verdade, fala como um cúmplice.
Está descobrindo agora que não adianta querer simular imparcialidade: quem dorme com ditadores, amanhece conspurcado. E sob um arbítrio danado, como foi o cerco à embaixada da Argentina, cuja representação passou para o Brasil, como estabelecem as regras mundiais da diplomacia, depois que Maduro mandou expulsar, em 24 horas, todos os diplomatas argentinos e agregados.
A suspensão do cerco mostra como Maduro se sente livre para intimidar os ex-companheiros do governo brasileiro. Também complica uma eventual saída de seis assessores da vitoriosa mas frustrada campanha liderada por María Corina Machado, quatro homens e duas mulheres, que pediram asilo quando estavam prestes a ser presos pelo regime ditatorial, no qual polícia e justiça fazem o que tirano e seus comparsas mandam.
O governo argentino pediu que o Brasil passasse a representá-lo, principalmente na proteção aos refugiados, um dos fundamentos mundiais da diplomacia. Sem o princípio da inviolabilidade das representações diplomáticas, seus ocupantes passam a potencialmente ser tratados como reféns de um regime de força.
MORTE LENTA
Mandar cortar a energia da embaixada onde agora está hasteada a bandeira brasileira e cercá-la por veículos da Sebin, o serviço de inteligência controlado por agentes cubanos, como aconteceu durante o fim de semana, é uma manifestação de poder e um tapa na cara do governo brasileiro. A suspensão do cerco mostra apenas que Maduro morde e assopra conforme acha conveniente.
Maduro está se sentindo poderoso para fazer isso. Com a força das armas por trás de seu trono manchado de sangue e apoio da Rússia e da China, não existe nada que nenhum país possa fazer para que o resultado eleitoral legítimo seja aceito, mesmo que os Estados Unidos redobrem sanções ou façam pegadinhas como a apreensão do avião presidencial venezuelano na República Dominicana.
Mais ainda: Maduro comemora que Edmundo González tenha pedido asilo político e partido para a Espanha.
É exatamente o que queria. Se prendesse González, como poderia perfeitamente fazer com seu simulacro de justiça, aumentaria a projeção do diplomata aposentado, um educado cavalheiro à moda antiga que não era da política e se candidatou por dever moral, mesmo sem a força vital da mulher que o levou a ser eleito, María Corina Machado.
“É necessário para nossa causa preservar sua liberdade, sua integridade e sua vida”, disse María Corina sobre González. Mas na verdade, exílio é uma espécie de lenta morte política. O caso de Leopoldo López é um exemplo: ele era da mesma cepa carismática de María Corina, tinha fogo interior e conquistava as massas, além de ser um homem de boa aparência – isso conta, na força da imagem, tendo aura de mártir por ter passado três anos preso. Hoje vive na obscuridade do exílio na Espanha.
BAIXAR UM ORTEGA?
É exatamente o mesmo destino que Maduro quer para María Corina: se ela não aguentar as perseguições e ameaças, terá que seguir o caminho do exílio.
Irá Maduro em algum momento virar a mesa contra o governo brasileiro, incomodado com as críticas fininhas, fininhas, tipo o cauteloso “decepcionante” usado por Lula da Silva? Ou o “surpreso” com que o assessor/chanceler oficioso Celso Amorim definiu sua reação ao assédio à sede diplomática?
Irá Maduro dar uma de Daniel Ortega, o decrépito “coma-andante” nicaraguense, e partir para a ruptura, com a expulsão de embaixadores e acusações, numa suprema ironia, de conluio com os Estados Unidos?
Algumas versões dizem que o cerco à embaixada argentina sob jurisdição brasileira foi uma forma de intimidar González, então abrigado na embaixada da Holanda, apressando sua ida para a Espanha. Fontes venezuelanas citadas pelo El País dizem que “o problema agora é Maduro. Em seu entorno, já se começa a assumir que a situação é insustentável. Mas ele, não”.
Será verdade?
PAPAI NOEL SINISTRO
Pelos atos, os bolivarianos estão se achando – até insinuações sobre uns certos segredos Daniel Ortega fez. A caixa de ferramentas intimidatórias de Maduro é muito maior.
Um exemplo conhecido, revelado por uma inesperada revista de aeroporto: o jatinho com a mala onde um executivo venezuelano transportava 800 mil dólares para a Argentina, então sob comando da família Kirchner. Por uma incrível coincidência, Cristina Kirchner estava em campanha eleitoral.
As sacolas de dólares para partidos amigos tornaram-se legendárias.
Como os tiranos das obras de literatura, Maduro anda delirante. Acusou os pobres asilados na embaixada argentina de tramar um complô para assassiná-lo. Também antecipou o Natal para outubro – uma grotesca manipulação destinada a distribuir pernis para acalmar os pobres e dar uma de Papai Noel, mesmo que sinistro.
Que surpresinhas estará guardando para uma eventual ruptura com o Brasil? Terá coragem para revelá-las?
E, no final, quem estará falando fino ou grosso?