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Loucura: na Argentina, movimentos sociais controlam os benefícios

Para compreender melhor a 'batalha das ruas' que começa hoje contra Milei, vale lembrar os caminhos do dinheiro para os mais pobres

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 9 Maio 2024, 18h23 - Publicado em 20 dez 2023, 06h28
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  • “Quem bloqueia, não ganha”. Assim Javier Milei definiu no discurso de posse qual seria sua política para os piqueteiros, os manifestantes que interrompem o trânsito e infernizam a vida dos cidadãos comuns que precisam se locomover.

    Depois, seu governo deixou mais claro. Os beneficiários de programas sociais que participam dos piquetes seriam cortados. Como? Com um sistema de reconhecimento facial que separaria os manifestantes ordeiros dos que bloqueiam o trânsito.

    Há dúvidas até sobre a validade constitucional desse sistema – uma juíza já decretou que ele não pode sequer ser aplicado a criminosos foragidos. E mesmo que fosse possível, como seria cotejado com a identidade dos beneficiados por programas sociais?

    “Vamos para cima”, ameaçou um dos mais conhecidos dirigentes dos movimentos sociais de esquerda, Eduardo Belliboni. Ele e Juan Grabois, o favorito do papa Francisco, são figuras de maior destaque nesse universo. Grabois foi candidato presidencial e teve 3% dos votos no primeiro turno.

    Só para dar uma ideia do nível de radicalismo de Belliboni. Depois do discurso de posse de Milei, ele afirmou que o novo governo tem “planos de assassinato” para a maioria da população.

    “Os protestos não podem ser proibidos. Os protestos são a relação natural entre o povo e o estado”, proclamou o líder do Polo Operário, como se fosse um Lênin dos pampas.

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    Círculo vicioso

    Mas nos tempos da revolução russa certamente não havia a mamata que proporciona a estrutura financeira, digamos, para as organizações sociais. Muitos dos múltiplos benefícios sociais são distribuídos através das organizações que “vendem paz social”, ou seja, chantageiam o governo – qualquer governo – com sua capacidade de interromper o trânsito no coração de uma metrópole como Buenos Aires e outras cidades.

    Assim resumiu a situação o jornalista Alfredo Leuco, que tem um programa de rádio muito popular: “Quem dá os benefícios para que esses delinquentes os distribuam ou os cortem a seu critério? O governo nacional. Contra quem eles protestam duas ou três vezes por semana? Contra o mesmo governo que lhes entrega os benefícios para que distribuam. Não existem antecedentes no mundo para semelhante loucura”.

    “Repito, porque muita gente se esquece ou ignora esse círculo vicioso. O governo dá os benefícios (ou seja, dinheiro) para Belliboni ou Grabois e estes, como intermediários, os entregam somente para aqueles que aceitam as condições que impõem. E entre as condições está a de ir a todos os protestos que sejam convocados contra o governo.”

    Chantagem

    Os beneficiados também pagam uma comissão ou caixa comum, obviamente controlada pela “diretoria”. Num benefício como o salário desemprego, por exemplo, equivalente a meio salário mínimo, pode chegar até a 50%. Isso ajudaria a explicar porque o discurso de Milei contra a “casta” funcionou a ponto de que ele fosse votado em bolsões históricos do peronismo. ”Casta”, para os mais humildes, pode significar não grandes figuras da política nacional, mas o preposto ou o líder de organização que leva uma parte de seus minguados benefícios sociais.

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    O sistema de chantagem foi aplicado até contra Cristina Kirchner, quando ela era presidente. Os tais líderes a consideravam de direita, para dar uma ideia. Alberto Fernández também não escapou dos piqueteiros.

    Agora, com Milei, eles têm seu inimigo ideal: um ultraliberal que começou a aplicar um ajuste fiscal feroz num ambiente altamente inflacionário. Ou seja, um multiplicador de penúria contra a promessa de que haverá “luz no final do caminho”.

    Anarquia das ruas

    É por isso que a aposta de Milei é tão absurdamente alta que continua a desafiar a lei das probabilidades. Hoje, coincidindo com os primeiros protestos, ele anuncia o grande pacote de desregulamentação que, no papel, destravará a economia argentina. São mais de duzentos páginas de pacotaço.

    Qualquer pessoa decente desejaria que, apesar de parecer tão improvável, a aposta dê certo e beneficie um país já submetido a tantos sacrifícios. Belliboni, ao contrário, já declarou que deseja que “tudo vá mal” para o novo governo.

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    “Eles apostam na anarquia das ruas”, disse Alfredo Leuco. “Querem que tudo exploda pelos ares porque o sucesso de um governo os diminui e os faz perder seus privilégios de uma suposta vanguarda iluminada. São exatamente o contrário. São fascistas de esquerda, são reacionários e celebram quando o povo e o país se dão mal”.

    O primeiro teste, para Milei e para Patricia Bullrich, a ministra da Segurança, será hoje. A data foi escolhida porque coincide com o aniversário dos protestos que, reprimidos com violência, com 38 mortos, acabaram provocando a queda de Fernando de la Rúa, pouco antes do natal de 2001. A situação era tão descontrolada que mais três substitutos do presidente acabaram caindo. O incrível período de onze dias ficou conhecido como o dos cinco presidentes.

    É por isso que, apesar de tão comuns, os protestos de rua na Argentina nunca são apenasprotestos. Podem culminar num desfecho imprevisível, trágico e anárquico, que engole o país inteiro.

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