O que está acontecendo nos Estados Unidos é nada menos que extraordinário: o “sistema” conseguiu salvar a si mesmo e Kamala Harris, uma vice-presidente ruim e mal avaliada, está explodindo. Hoje à noite, será consagrada, ou coroada, na convenção democrata.
A palavra “sistema” foi entre aspas porque abarca não apenas as estruturas visíveis, a começar pela liderança do Partido Democrata, mas também a rede invisível da alta burocracia à grande imprensa, do iluminado mundo do show business ao mundo das sombras dos serviços de inteligência, da academia a Wall Street. Na Grécia antiga, seria chamada de oligarquia, mas como os Estados Unidos são democráticos, fiquemos com elite.
É essa estrutura que entrou em choque com a eleição de Donald Trump em 2016, apesar do jogo sujo de falsas acusações amplificadas em praticamente todos os meios de comunicação e dossiês fabricados.
Trump não fez um governo ruim – ao contrário, as pesquisas indicam que a maioria dos americanos acha que estava melhor de vida na sua época. Mas o estilo caótico, as declarações destemperadas e os efeitos da pandemia sofridos por todos os governos do mundo ocidental, embora tenha aberto as portas dos cofres para manter a economia em pé, foram bem usados pelos democratas para eleger Joe Biden em 2020.
“TINHA QUE SER FEITO”
Os defeitos do idoso ex-vice-presidente foram escamoteados a pretexto da pandemia. Ele, literalmente, ficou no porão de casa, seguindo um roteiro sem incidentes. Falar em idade ou sinais de declínio cognitivo transformaram-se em crimes punidos pelo linchamento virtual. Preconceito, etarismo e, pior de tudo, trumpismo, eram as acusações unânimes.
O ilusionismo foi cruelmente detonado pelo próprio Biden. É difícil acreditar, mas o debate que selou seu destino foi em 27 de junho. O “sistema” mudou de lado diante da perspectiva de que os democratas perdessem a Casa Branca e o Senado e não recuperassem a Câmara dos Deputados. Biden tinha que sair, inexoravelmente, como qualquer pessoa poderia ter constatado depois do debate.
“Eu fiz o que tinha que ser feito”, resumiu Nancy Pelosi sobre a nada sutil punhalada nas costas de Biden, seu amigo de mais de cinquenta anos. Pelosi é uma das pessoas com maior capacidade de articulação da política americana. Embora ela própria esteja com 84 anos, foi a mais eficiente mensageira do recado fatídico para o presidente.
Recapitulando: em menos de dois meses, Biden enterrou a própria candidatura e acabou caindo fora, Kamala Harris foi proclamada a legítima sucessora – embora sem um único dos catorze milhões de votos dados ao presidente nas eleições primárias, um processo nada democrático -, Trump sobreviveu a um atentado levando uma bala na orelha e erguendo o punho para gritar aos partidários “Lutem! Lutem!”.
ORIGEM NEBULOSA
Parecia ter fechado a fatura. Mas a política americana e o “sistema” andam cheios de surpresas estarrecedoras. Kamala era mal avaliada como vice-presidente. Não tinha feito nenhuma atividade marcante. Falava mal, com risadas exageradas e raciocínio tortuoso. E carregava a origem nebulosa de sua carreira pública, como amante de um político muito mais velho, Willie Brown, o presidente da Assembleia Estadual da Califórnia e depois prefeito de São Francisco.
Agora, cercada por um rigoroso cordão sanitário e a adoração da mídia, ela já parece a presidente eleita, pisando firme em palcos país afora com seus sapatos de salto da grife Manolo Blahnik. Ultrapassou Trump em praticamente todas as pesquisas que contam e continua subindo. Na média do RealClearPolitics está com 48,2%, contra 46,7% para Trump. O 538 dá uma diferença maior: 46,6% a 43,7%.
Nada está colando. A falta de entrevistas à imprensa? Os americanos veem a candidata na televisão sem parar e não parecem preocupados que ela esteja lendo tudo no teleprompter. Associação aos pontos mais fracos de Biden, a inflação dos alimentos e o descontrole nas fronteiras? Não pegou. Um candidato a vice-presidente, Tim Walz, que mentiu sobre ter servido em combate e até sobre a fertilização in vitro dos filhos (na verdade, foi inseminação intrauterina, sem a criação de embriões descartáveis, a origem da discussão)? A maioria não está nem aí.
ANALFABETISMO ECONÔMICO
Projetando uma imagem cheia de energia, bonita, bem colocada diante das câmeras e bem vestida, com nada menos que duas stylists cuidando de seu guarda-roupa, Kamala parece ter, no momento, uma espécie de licença para matar. Em termos políticos, significa liberdade de falar besteiras, como a imensamente absurda proposta de controle de preços, sem pagar o preço por isso.
Até o Washington Post, que formou na linha de frente das mentiras contra Trump, publicou um artigo chamando as propostas de controle de preços, perdão às dívidas médicas e pesados subsídios aos compradores da primeira casa de “agenda econômica agressivamente populista”.
David Brooks, que se passa por conservador no New York Times, disse que a ideia de controle de preços, um mecanismo que comprovadamente cria escassez e mercado negro, retrata “um tipo de analfabetismo econômico que é surpreendente para uma candidata democrata responsável”.
Como nunca passaram pela experiência de ver boi sendo laçado no pasto por agentes policiais – o retrato inesquecível do controle de preços no Brasil -, muitos americanos podem até achar a ideia boa.
MERCADO EM ALTA
O “efeito convenção”, com a maciça e deslumbrada cobertura nos meios de comunicação e até a participação de Oprah Winfrey (mais importante do que os Clinton ou os Obama), deve impulsionar os números favoráveis a Kamala. A partir de cinco pontos de diferença, ela pode se consolidar numa posição impossível de ser revertida, faltando apenas 75 dias para a eleição.
Trump ainda não conseguiu reformular adequadamente a campanha, que era toda focada em Joe Biden – uma prova de que o “sistema” agiu de forma inteligente em favor de seus interesses ao se concentrar em Kamala, eliminando qualquer tentativa de outros pré-candidatos.
Uma conta menos batida que as pesquisas: as altas nos mercados de ações este ano apontam uma probabilidade de 64% de que Kamala seja eleita, segundo Mark Hulbert, do MarketWatch.
Isso num mundo normal.
Mas os Estados Unidos nos últimos meses, como todos temos visto, têm sido tudo, menos normais.