Muita gente do mundo acadêmico caiu de pancada em Samuel Huntington quando ele escreveu o Choque de Civilizações, em 1996. Mas é fato inegável que muito do que previu está acontecendo. Em lugar da diluição das fronteiras culturais entre povos num mundo globalizado, e da otimista teoria de que não existiam guerras entre dois países que tivessem McDonald’s (Rússia e Ucrânia desmentiram a hipótese), vemos hoje uma afirmação das sete ou oito identidades civilizacionais mencionadas pelo cientista político americano: ocidental, confuciana, islâmica, hinduísta, japonesa, eslava ortodoxa, latino-americana e possivelmente africana. A explosão da China e a atual ascensão da Índia ainda estavam longe de ser os fenômenos que hoje nos espantam quando Huntington fez suas classificações. E a União Soviética nem havia implodido, abrindo caminho a um Vladimir Putin que construiria seu projeto de poder com base em características aumentadas ou inventadas da esfera eslava ortodoxa.
Está a civilização ocidental, incomparável em produção de prosperidade e liberdade, em declínio diante de concorrentes com mais sede de ganhar — tudo, de poder econômico a conhecimento — e menos pudores em se autoafirmar? Do declínio populacional à autoflagelação, do derretimento das fronteiras à vergonha da afirmação dos próprios valores, o Ocidente dá sinais de falta de fôlego e encolhimento. Jovens que deveriam representar o que de melhor o mundo acadêmico já produziu repetem slogans do Hamas e abraçam o antissemitismo, em cenas estarrecedoras. Mulheres que gritam “estupro” quando atrizes visitam apartamentos de produtores conhecidos pelo comportamento indecente negam-se a reconhecer a violência sexual praticada contra tantas israelenses com métodos inenarráveis como tiros, facadas, sarrafos e pregos nos genitais.
“Os mais avançados centros do saber dos Estados Unidos viraram foco de fanatismo. Os bárbaros triunfam”
Os mais avançados centros do saber viraram focos de fanatismo, e seus praticantes, mestres e alunos consideram-se tanto mais moralmente superiores quanto mais abraçarem a causa do islamismo radical. Os bárbaros triunfam no ápice do mundo ocidental, para ficar na comparação inevitável com a maior e mais estudada civilização de todos os tempos, a romana. Alunos americanos sem nenhuma relação com a religião muçulmana repetem as preces islâmicas nos gramados da Ivy League, a denominação conjunta das melhores universidades dos Estados Unidos. Acham que estão sendo revolucionários.
Tendo rejeitado todos os preceitos do cristianismo, a religião do “colonialismo”, inclinam-se a Alá com total indiferença ao tremendo e histórico esforço de separação das esferas empreendido ao longo de séculos no mundo cristão. Samuel Huntington fez uma comparação que vale lembrar: “Deus e César, igreja e estado, autoridade espiritual e autoridade moral, foram o dualismo prevalecente na cultura ocidental. Apenas na civilização hinduísta religião e política foram tão distintamente separados. No Islã, Deus é César; na China e no Japão, César é Deus; na esfera ortodoxa, Deus é o sócio minoritário de César”.
“Os perigosos choques do futuro irão provavelmente nascer da interação entre arrogância ocidental, intolerância islâmica e assertividade chinesa”, prognosticou Huntington. E qual o papel dos jovens universitários que glorificam o terrorismo do Hamas? Serão os canários cantando para prenunciar o desmoronamento de conquistas que pareciam inabaláveis?
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892