A bolsa está apostando numa vitória de Donald Trump – e os participantes em sites de apostas também. Quem segue as pesquisas tradicionais range os dentes diante da indefinição apontada pela diferença mínima: 48,4% para ele, 48,1% para Kamala Harris. Como os dois estão perfeitamente dentro do páreo para ganhar, a animosidade pega fogo.
Um exemplo, entre muitos: Kim Kardashian tirou do ar a página do YouTube de seu filho Saint por postagens em que chama Kamala de “burra”. Por que um menino de oito anos tem página no YouTube (mesmo tendo assinado um “contrato” no qual se compromete a “ seguir as ordens da minha mãe”)? O negócio da família é aparecer, todos sabem. E o menino pode ter sido influenciado por seu pai, Kanye West, que apoia Trump.
Sem falar no próprio Trump, que usa o péssimo método de dar apelidos ofensivos aos adversários e diz que Kamala tem “QI baixo”, o último exemplo que qualquer pessoa quer dar para seus filhos.
Como ele é chamado de fascista e Hitler por oposicionistas, os democratas conseguiram o prodígio de ganhar o campeonato de insultos, um comportamento vergonhoso.
E no alto da lista ficou Joe Biden, o presidente que se pretendia um farol de superioridade moral. Repudiado na campanha de Kamala, que tentou se desvincular de Biden para não ser contaminada por seu baixo índice de aprovação (40,9%, contra 56,4% de rejeição), ele saiu da quase obscuridade em que foi lançado para dar um presentão para Trump ao dizer que o “único lixo que vejo são os apoiadores” do ex-presidente.
DIREITO À OFENSA
Ou seja, rompeu a regra napoleônica de não interromper o inimigo quando ele está cometendo um erro. Trump estava levando uma pancadaria pesada por causa de algo que, excepcionalmente, não havia dito. Por um erro crasso de comunicação, sua equipe convocou um humorista para fazer um stand up no grande comício do Madison Square Garden.
E ainda por cima um humorista que é partidário do direito igual de todas as minorias – e as maiorias também – se sentirem ofendidas, No que era para ser apenas um esquenta, mas virou o tema principal, Tony Hinchcliffe fez uma comparação entre a quantidade alta de filhos que os hispânicos têm e a sua entrada em massa nos Estados Unidos – não dá nem para explicar melhor porque a coisa é de show de humor, onde os pagantes sabem que vão ouvir coisas picantes, não para uso do público em geral.
Hinchcliffe também fez uma piada com Porto Rico, “uma ilha flutuante de lixo” no meio do mar. Poucos perceberam a referência aos problemas de processamento de resíduos na ilha caribenha que tem um status único como território não incorporado dos Estados Unidos. Todos os canais de televisão, com a óbvia exceção da Fox, acharam que tinham encontrado o caminho para derrotar Trump nesses momentos finais da campanha e martelaram a piada ofensiva – quase um pleonasmo – sem parar.
Até Joe Biden entrar em ação e, ao defender a honra dos porto-riquenhos, dizer que os eleitores de Trump são o verdadeiro lixo. Pronto, estava dita a besteira. Poderia o presidente ter, inconscientemente, desejado prejudicar a mulher a quem teve que ceder a candidatura?
EXACERBAÇÃO DOMINANTE
Os especialistas na psique humana poderão discutir o lapso freudiano por muito tempo, mas Trump achou melhor explorar o “lixogate” de maneira performática. Mandou pintar o maior caminhão de lixo possível com seu nome, vestiu um colete refletivo do tipo usado pelos coletores, deitou e rolou: “Joe Biden finalmente disse o que ele e Kamala realmente pensam sobre nossos apoiadores”.
Não tem Bad Bunny que dê jeito (o cantor porto-riquenho, chamado Benito Antonio Martínez Ocasio, declarou apoio a Kamala). O fora de Biden pode não mudar votos – e são apenas 3% ainda em jogo –, mas tem o potencial de mobilizar eleitores que comparecerão às urnas para votar em Trump só de raiva. Algo parecido com o que aconteceu quando Hillary Clinton chamou uma fatia do eleitorado republicano de “deploráveis”.
Finais de campanha sempre são acalorados, mas este vem sendo especialmente virulento pelo nível das ofensas mútuas. Todos já percebemos que acabou o mundo em que diferentes correntes políticas se alternavam, uma voltada mais para os trabalhadores, outra mais para os empreendedores, convergindo nos assuntos existenciais e assumindo elegantemente o comando da oposição quando perdiam nas urnas.
A exacerbação das posições políticas e, mais do que animosidade, a negação em relação ao “outro lado” são hoje generalizadas e dominantes.
CONAN, O BÁRBARO
Um exemplo final da extrema volatilidade dos ânimos aconteceu com Arnold Schwarzenegger. O ator, que já foi governador da Califórnia pelo Partido Republicano, fez um anúncio de apoio a Kamala Harris. Enumerou argumentos razoáveis: os republicanos “esqueceram-se da beleza da liberdade de mercado, aumentaram os déficits e rejeitaram resultados eleitorais”.
“Democratas não são muito melhores ao lidar com déficits e acho que as políticas locais estão prejudicando nossas cidades com o aumento da criminalidade”.
“Odeio a política mais do que nunca”, acrescentou, dizendo que pesou na sua decisão final o aspecto antiamericano de rejeitar resultados das urnas.
Choveram reações brutais. Dizia um dos comentários que recebeu: “Vá transar com outra babá como fez o marido de Kamala”.
O ator de origem austríaca teve um filho só reconhecido muito a posteriori com uma empregada da casa em que morava com a mulher, na época, Maria Schriver, do clã Kennedy. Douglas Emhoff, o marido de Kamala, também teve que admitir um caso com a professora de seus filhos que trabalhava como babá, durante o primeiro casamento dele, produzindo uma gravidez de final não conhecido.
São comportamentos nada abonadores, mas pouco têm a ver com o debate de ideias políticas. Ou tinham. Hoje, no mundo em que tantos se converteram em versões digitais de Conan, o Bárbaro, vale tudo.