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Desprezo no adeus a Gorbachev é um sinal do que deu errado na Rússia

Preservando seu caráter nacional único, o país poderia ter se tornado uma potência democrática, mas seguiu no caminho do autoritarismo

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 2 set 2022, 14h34 - Publicado em 2 set 2022, 08h15
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  • Vamos começar (e terminar) com uma piada sobre Mikhail Gorbachev. É provavelmente a mais conhecida do gênero:

    “Um trabalhador russo está esperando na fila para comprar vodca. Depois de duas horas, fala para o sujeito atrás dele: ‘Não aguento mais. Segura meu lugar enquanto vou dar um tiro em Gorbachev’.

    Volta duas horas depois e o homem que estava guardando seu lugar pergunta: ‘Deu o tiro?’.

    Responde o indignado: ‘Não, a fila para atirar nele estava maior ainda’”.

    A piada resume o ressentimento que Mikhail Gorbachev continua a despertar entre os russos (e o fato, quase esquecido, de que ele começou querendo controlar os níveis de alcoolismo na Rússia). E também uma espécie de estado de espírito nacional que sempre provoca as mesmas dúvidas: seriam os russos intrinsecamente incapazes de conviver com a democracia? Sempre vão preferir um homem forte no comando? Nunca conseguirão conciliar direitos individuais com liberdade econômica e império da lei?

    Os 39 segundos que Vladimir Putin passou entre entrar na sala onde estava o caixão aberto de Gorbachev, deixar um maço de rosas vermelhas, encenar consternação, fazer o sinal da cruz (da direita para a esquerda, como fazem os ortodoxos) e ir embora resumem a má vontade no limite do desrespeito com que o homem que assinou o atestado de óbito da União Soviética foi tratado tanto na morte como na vida.

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    “Um comunista que enterrou a ideia do comunismo a sete palmos (muito provavelmente contra sua própria vontade) e o líder de um grande país a cujo colapso assistiu imponentemente”, resumiu a agência Ria Novosti, que evidentemente reflete a opinião oficial.

    A agência ironizou: não seria surpresa se Gorbachev tivesse dois enterros, um em Moscou e outro em Londres, com a participação dos “nossos emigrantes, convencidos que ele trouxe a liberdade à Rússia e ao mundo”. Enquanto isso, “nós ainda estamos desembaraçando os fios de seu governo catastrófico e continuaremos a corrigir as suas consequências por muito tempo”.

    Todo mundo entende que por “catastrófico” Moscou quer dizer o desligamento dos países-satélite que o império comunista mantinha sob seu domínio e das repúblicas soviéticas que declararam independência. A Ucrânia é o caso mais inaceitável e as consequências do repúdio à própria ideia de que os ucranianos possam seguir seu caminho de autonomia – aprovado em plebiscito por 92% da população – estão sendo vistas agora no campo de batalha.

    Vale lembrar, para quem já esqueceu ou não viveu diretamente o momentoso período, a lista completa dos países, além da Ucrânia, que se desprenderam da mãe-madrasta Rússia: Armênia, Azerbaijão, Belarus, Cazaquistão, Estônia, Geórgia, Letônia, Lituânia, Moldávia, Quirguistão, Tajiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão.

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    Mais de trinta anos depois, muitos russos continuam a achar que “perderam” não apenas território, população e recursos, mas a posição de potência dominante. E por culpa de Gorbachev.

    Teria sido possível manter o império ou ele acabaria implodindo de qualquer maneira? A segunda hipótese é a mais provável. Gorbachev era um reformista que queria melhorar a economia estatizada (estava também aberto a ousadias quase inacreditáveis, na época, como mandar soltar o dissidente Andrei Sakharov, suspender a censura, acabar com a lista de livros proibidos, promover eleições municipais com mais de um candidato).

    Essa rajada siberiana de ar fresco coincidiu com um presidente americano, Ronald Reagan, que tinha princípios simples (“Como termina a Guerra Fria? Nós ganhamos, eles perdem”), um projeto militar ambicioso (o nunca realizado Guerra nas Estrelas) e ao mesmo tempo a disposição de “fazer negócio” sobre a limitação do arsenal nuclear das superpotências.

    Sua parceira ideológica, Margaret Thatcher, havia detectado exatamente esse potencial em Gorbachev. Um papa polonês como João Paulo II completou o palco histórico ao endossar – cautelosamente, embora amparado pela firmeza da fé – a força moral da rebelião que havia colocado trabalhadores de um estaleiro e intelectuais sob a mesma bandeira do Solidariedade.

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    Gorbachev teve a grandeza de entender que só uma repressão em escala inominável – e talvez nem ela – conseguiria interromper a marcha da história. Nesse ponto, o que não fez foi mais importante do que fez: não chamou os tanques – e não deixou que os dirigentes comunistas chamassem.

    O jornalista inglês Owen Matthews conta que Gorbachev continuava a usar os mesmos clichês do vocabulário comunista – “dialética histórica”, “processos sociais” – para tentar responder às críticas dos russos comuns, que viram o padrão de vida já bem limitado que tinham na era soviética despencar quando a URSS acabou em caos.

    Matthews acompanhou, em 1996, o lançamento em Moscou do livro de memórias de Gorbachev. A livraria estava lotada de “pessoas que haviam ido lá só para dizer pessoalmente ao ex-líder soviético quanto o odiavam”.

    “Tive de deixar tudo o que tinha quando fugi do Cazaquistão, todos os meus livros. Por que você deixou a União Soviética desabar?”, perguntou um senhor idoso. “Por que os bandidos conseguiram tomar nosso grande país?”, indignou-se uma senhora.

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    As perguntas ajudam a entender por que a dissolução da URSS, feita de cima para baixo, teve tanta rejeição, ao contrário dos processos nos países-satélite.

    Uma transição menos dolorosa teria aproximado a Rússia de um projeto verdadeiramente democrático? Gorbachev seria lembrado com mais respeito?

    A piada de encerramento:

    “Lênin, Stálin, Khrushchev, Brejnev e Gorbachev estão viajando no mesmo trem. Claro, o trem quebra. Lênin arenga os trabalhadores para se unirem e consertarem o estrago. Quando isso não dá certo, Stálin enfileira os trabalhadores e fuzila todos. Não funciona. Khrushchev tenta umas reformas para ressuscitar os trabalhadores. Como não adianta, Brejnev fecha a cortina e sugere que finjam que o trem está andando.

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    Depois de alguns momentos de trem parado e escuridão, Gorbachev diz: ‘Ei, alguém aqui vai querer que eu traga um McDonald’s?’”.

    O enterro do falecido líder será amanhã, mas “a agenda de trabalho” de Putin não tem espaço para que ele compareça.

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