De mãos amarradas: pressão dos Estados Unidos segura Israel em Gaza
Situação humanitária e grave erro no ataque que matou sete voluntários de ONG humanitária criam situação que pode impedir derrota do Hamas
Judeus israelenses sentem que, mais uma vez, seu país vai ficar sozinho. E também dividido por tensões internas, com medo de uma represália iraniana com graves consequências e submetido à pressão dos Estados Unidos, o país que tem os instrumentos para fazer esse jogo, para não avançar no lance final contra o Hamas.
Por causa dessas pressões para que o último bastião do Hamas, em Rafah, seja poupado de um ataque que inevitavelmente provocaria vítimas entre a população local e o grande número de pessoas vindas de outras partes de Gaza para se refugiar na cidade, Israel pode simplesmente não alcançar a dupla vitória prometida: desmantelar a organização e salvar os reféns.
Para não deixar dúvidas, “fontes” americanas vazaram a conversa dura de Joe Biden com Benjamim Netanyahu e a frase definitiva: “Não conseguiremos apoiar vocês” se o rumo da guerra não mudar.
Mudar o rumo da guerra significa não atacar Rafah – e uma inesperada retirada de forças do território parece indicar isso, pelo menos temporariamente.
Se a liderança do Hamas sobreviver, poderá cantar vitória e isso não é nada impossível.
De sua maneira arrevesada, o ex-presidente Donald Trump resumiu: Israel “está perdendo a guerra de relações públicas, e perdendo feio”. E deveria “terminar logo” o que tem que fazer. Isso não parece provável.
ERRO CATASTRÓFRICO
Desde que a guerra eclodiu, desencadeada pelo ataque que pegou todo o aparato bélico absurdamente desprevenido e matou 1 200 pessoas, já se sabia que Israel teria uma “janela de oportunidade” para desarticular o Hamas antes que o horror das vítimas civis levasse os aliados ocidentais e os Estados Unidos a pressionar pelo cessar fogo.
Essa janela durou seis meses, completados ontem. O impulso definitivo para que seja fechada veio com o bombardeio do comboio de funcionários da ONG World Central Kitchen. Foi, obviamente, um erro operacional grave. Israel tinha, inclusive, interesse em incentivar a operação da organização criada pelo chef espanhol José Andrés como alternativa à UNRWA, o órgão da ONU com interesses irremediavelmente comprometidos pela associação com o Hamas.
Os operadores do drone que bombardeou, sucessivamente, os três carros do comboio, agindo sob a supervisão de oficiais superiores e de uma equipe de advogados, tomaram a decisão, errada, de achar que havia um integrante armado do Hamas com o grupo de seis estrangeiros e um palestino. Até as tentativas de contato telefônico com a ONG não deram certo.
Foi um erro catastrófico para Israel. Os sucessivos pedidos de desculpas e o afastamento de dois oficiais envolvidos diretamente na operação não remediaram uma situação em que muitos aliados de Israel já estavam convencidos a pressionar o país por causa das vítimas civis em número inaceitável para as consciências ocidentais.
Não adianta argumentar que os Estados Unidos, pioneiros no uso de drones, também já cometeram erros do tipo, inclusive o terrível caso ocorrido em 29 de agosto de 2021, quando um veículo não tripulado seguiu durante cinco horas um carro conduzido por Zemari Ahmad, empregado por uma organização de ajuda alimentar. Os operadores concluíram, erroneamente, que ele era um terrorista suicida e explodiram o carro, matando o motorista e mais nove inocentes, inclusive sete crianças da família.
SEM OPÇÕES
Quem está na posição de força, inclusive pela possibilidade de suspender a entrega de armamentos sem os quais a guerra em Gaza ficaria altamente prejudicada, são os americanos. Também não é nada difícil divisar que o governo Biden gostaria de se livrar de Netanyahu, tendo inclusive um substituto, mais popular, na figura de Benny Gantz, o único oposicionista de destaque que aceitou integrar o gabinete de guerra.
Gantz já tomou a iniciativa de propor eleições em setembro, um lance arriscado em plena guerra.
Ele, obviamente, tal como a ampla maioria dos políticos e da opinião pública, compartilha do objetivo de tirar o Hamas de Rafah, mas seria mais flexível a uma participação dos rivais palestinos do Hamas no pós-guerra. Muitos israelenses são contra isso, embora a alternativa seja uma ocupação de longo prazo, sob a hostilidade dos aliados mais importantes de Israel.
A verdade é que não existem opções boas. A menos ruim seria escolhida por Gantz, num governo sem a participação da extrema direita – e sua oposição total a qualquer saída com a participação da Autoridade Palestina.
Ironia total: esses palestinos só poderiam entrar em ação sob a proteção de Israel. O Hamas os considera inimigos mortais, tendo matado 600 integrantes da Fatah na miniguerra civil de 2007.
SANGUE DERRAMADO
Sem a vitória contra os terroristas e sem o resgate dos reféns, muitos israelenses também estão esperando a vingança do Irã pelo ataque que pulverizou o consulado iraniano em Damasco, matando o mais importante de seus generais no comando das operações de fornecimento de armas aos aliados do regime xiita, inclusive o Hezbollah, no Líbano.
Várias redes de abastecimento registraram o aumento das compras de água mineral, alimentos não perecíveis e geradores, sinais de receio de que um ataque, provavelmente via os satélites do Irã, interrompa o fornecimento de energia.
O sentimento de frustração contribui para aumentar as tensões políticas internas, com uma parte de familiares e simpatizantes dos sequestrados do Hamas juntando forças com grupos de manifestantes que retomaram os protestos de antes da guerra contra Netanyahu.
“Olhem-se no espelho e vejam se suas mãos não derramaram esse sangue”, disse Carmil Alty Kazir, irmã de um refém cujo corpo foi recuperado pelas Forças de Defesa de Israel. Elad Kazir era cativo da Jihad Islâmica, outro grupo terrorista em atividade em Gaza. Foi morto provavelmente em meados de janeiro e seu corpo estava enterrado em Khan Younis, onde comandos especiais o exumaram na última sexta-feira.
“VAI DEMORAR”
Países democráticos são assim: todos têm direito a expressar suas opiniões, mesmo quando não são justas, como ao acusar o governo de ser responsável pela morte de reféns.
Nem que fosse apenas por razões políticas, Netanyahu teria todo interesse em resgatar os sequestrados. E nem que as forças israelenses saíssem inteiramente do território palestino o Hamas iria libertar todos os reféns. São a maior arma que tem e o único motivo para que um assalto final não tenha sido desfechado.
É uma das duras realidades que confrontam os israelenses.
Netanyahu disse ontem que “não existe vitória sem entrar em Rafah, não existe vitória sem destruir os batalhões do Hamas lá”. Mas avisou: “Vai demorar”.
A súbita retirada de tropas, consequência evidente das pressões americanas, parece indicar que é exatamente isso que vai acontecer. A guerra continuará, mesmo que com baixa intensidade, dando tempo para mais pressões sobre Israel. E a intensidade pode aumentar em outra direção, no Norte, contra o Hezbollah.