Do conforto de nossas cadeiras diante do computador, achamos que já vimos tudo nessa guerra insana. Mariupol, a cidade à beira do Mar de Azov, nos avisa que não.
Ainda tem muita coisa pior por vir.
O método russo de destruição total simplesmente não deixou nem um único edifício incólume na cidade que tinha 430 mil habitantes antes da invasão. Agora, continuam lá cerca de 300 mil.
Depois que os atacantes quebraram as linhas de defesa em torno de Mariupol, o general Mikhail Mizintsev fez uma oferta que parecia generosa: dois corredores por onde as forças ucranianas poderiam bater em retirada, depois de baixar armas. Um em direção à Rússia e outro voltado para a região da Ucrânia que ainda não caiu. Era uma “oferta puramente humanitária”, disse o general russo.
“Mariupol não vai se render”, respondeu o presidente Volodymyr Zelensky. “Fora de questão”, martelou a vice-primeira-ministra Irina Vereshchuk. Um assessor do prefeito da cidade, Piotr Andriushchenko, foi mais rude e tuitou palavrões para os russos.
Faz sentido resistir quando não há mais esperança e continuar os combates só vai trazer mais tragédias para a população civil?
Não existem respostas fáceis.
Uma parte da resistência em Mariupol é comandada pelo Batalhão Arzov, o grupo paramilitar ultranacionalista com simbologia e eventualmente ideologia associada ao neonazismo. Todos seus integrantes sabem que não têm chance de sobreviver a uma rendição.
Mtyslav Chernov, videografista da agência AP, último jornalista a deixar Mariupol, juntamente com o fotógrafo Evgeniy Maloletka, fez um relato cinematográfico da vida debaixo de bombardeios constantes e do desespero da população, sem água, comida, energia, aquecimento e celular, sobrevivendo de saques e enterrando mortos onde dá – e quando dá.
Os dois jornalistas tinham feito sua base num hospital, onde aproveitaram o gerador para enviar seu material e os médicos queriam que eles mostrassem o sofrimento inacreditável das vítimas dos ataques.
Foi isso que eles fizeram, em circunstâncias dramáticas, quando um avião russo bombardeou uma maternidade, no último dia 10. Eles registraram mulheres prestes a dar à luz, apavoradas e feridas por estilhaços.
Uma delas perdeu o bebê e morreu pouco depois. Outra virou um símbolo dos extremos da informação manipulada.
Primeiro por redes sociais e depois pela embaixada russa em Londres, Marianna Podgurskaya foi acusada de ser uma blogueira que havia encenado estar na maternidade, usando maquiagem para simular ferimentos.
Detalhe: a linda Marianna realmente tinha um blog de maquiagem antes da guerra. E realmente estava grávida, sofreu ferimentos leves no ataque à maternidade e teve uma menina no dia seguinte – tudo registrado pelo fotógrafo Maloletka, numa demonstração irretorquível da campanha russa de desinformação.
Chernov contou em seu relato que ele e o fotógrafo foram retirados de Mariupol por soldados ucranianos para garantir que, se fossem presos pelos russos, não acabariam obrigados a desmentir a tragédia que havia documentado.
Esta é uma das histórias mais ilustrativas das forças terríveis que desabaram sobre a Ucrânia, acusada pelos russos de ser “culpada” por sua própria invasão e obrigada a provar que seu sofrimento é de verdade.
Mariupol inteira virou uma cena de crime de guerra, segundo descreveu o alto representante para política externa da União Europeia, Josep Borrell.
Entre os casos mais dramáticos, além do ataque à maternidade, está o bombardeio do teatro onde cerca de 1 300 pessoas se escondiam nos porões. Seis dias depois do ataque ao teatro, equipes de resgate ainda não haviam conseguido chegar ao local por causa do fogo constante de artilharia.
“Nós vamos derrubar o avião russo que jogou aquela bomba”, prometeu Zelensky.
No momento atual, soa como como uma promessa retórica, um dos muitos recursos que ele está usando para manter a unidade da resistência.
Sentindo que está virando a maré e impondo perdas insuportáveis à Ucrânia, Vladimir Putin mandou avisar que estava suspendendo as negociações sobre um possível acordo de paz até que Zelensky “faça sua lição de casa”.
Putin está tripudiando sobre um adversário mais fraco, nenhuma novidade.
Detalhe: Mariupol é uma cidade onde a maioria fala russo e houve um levante separatista em 2014. Hoje, há poucas simpatias pelos russos.
“Nesta cidade, todo mundo está o tempo todo esperando pela morte”, escreveu no Facebook a moradora Nadia Sukhorukova.
Sem rendição, muitos ainda vão encontrá-la.