As fronteiras entre verdades e mentiras, história e mitos, invenção inocente ou ficção perversa continuam a ser estonteantes no caso do hediondo massacre de Nicolau II, o último czar; sua mulher, Alexandra; Alexei, o caçula e herdeiro, e as quatro irmãs.
Cem anos depois, entre uma final de Copa do Mundo em Moscou ontem e um encontro hoje em Helsinque entre Vladimir Putin e Donald Trump, poucos russos teriam cabeça para pensar no que aconteceu na madrugada de 17 de julho de 1918 no porão de um casarão sem luxo nenhum em Ecaterimburgo, no coração dividido da Rússia, olhando para a Europa de um lado, além dos Urais, e para a imensidão siberiana do outro.
Mas pensam, sim. Mesmo quando não falam no crime que ainda ecoa através do tempo e da história, não apenas da Rússia, mas de todos os que se encantaram com o que parecia ser o lado bom da revolução bolchevique e do comunismo.
“Aqueles que cometeram este crime são tão culpados como aqueles que o aprovaram durante décadas. Somos todos culpados.”
Assim definiu Boris Ieltsin o peso da culpa coletiva quando o crime completou 80 anos. Não o bufão bêbado da caricatura em que se transformou o primeiro presidente pós-comunismo, mas um homem que participou da dolorosa cumplicidade e foi capaz de entendê-la e criticá-la.
O extermínio de uma família real inteira, único até no precedente brutal da Revolução Francesa, foi conhecido em detalhes porque o que os bolcheviques temiam realmente aconteceu.
A distante Ecaterimburgo realmente foi tomada pela legião de voluntários da Checoslováquia que participava de dois eventos avassaladores ao mesmo tempo: a I Guerra Mundial e a Guerra Civil Russa desfechada a partir da derrubada do regime czarista. O crime foi investigado com riqueza de detalhes.
Mesmo antes disso, fuzilar um czar e sua família não passou exatamente despercebido pela população local. Um diplomata britânico tentou enviar um telegrama ao Foreign Office no dia 18 de julho, informando: “O czar Nicolau II foi fuzilado ontem à noite”.
Interceptado por Filipp Goloshchiokin, o comissário bolchevique que havia acabado de inspecionar o local do massacre, o telegrama mudou para: “O czar carrasco Nicolau foi fuzilado ontem à noite, um destino amplamente merecido”.
(Goloshchiokin, como tantos outros dirigentes comunistas irredutíveis, foi fuzilado por ordem de Stálin em 1941.)
MAUSER E FACÃO
Outros fatos que parecem ficção aconteceram realmente. O czarevitch Alexei e as irmãs, que tinham o título de grã-duquesas, equivalente ao de princesas imperiais, levavam diamantes e outras pedras preciosas costuradas nas roupas íntimas em tamanha quantidade que os tiros desastrosos de seus algozes ricochetearam.
Precisaram ser mortos com tiros na cabeça, na maioria desfechados por Yakov Yurovsky, o comandante e planejador da execução no porão da Casa Ipatiev, sobradão que levava o nome do dono, um engenheiro militar, em todos os seus desastrosos detalhes.
O corpo sem vida da imperatriz Alexandra, nascida Alix, princesa de Hesse, foi alvo de um odioso ato de vilipêndio, praticado por dois integrantes do pelotão improvisado.
Outros dois se recusaram a atirar nas meninas, que “não haviam feito nada”. Todos os atiradores dispararam contra o czar.
Por causa da confusão, da inépcia e da fumaça da pólvora no ambiente sufocante, o fuzilamento foi suspenso na metade.
Tatiana, a irmã mais carismática, e Olga, a mais velha, estavam abraçadas, sentadas no chão, de costas contra a parede recoberta de papel com listas, gritando pela mãe. Yurovsky deu um jeito nelas, como nos demais sobreviventes. Usava uma Mauser e um facão.
Ao todo, foram assassinados o casal imperial – que tecnicamente não tinha mais a coroa, depois da abdicação feita durante a Revolução de Fevereiro -, o herdeiro, as quatro filhas, o médico que cuidada do menino, o valete do czar, uma criada da imperatriz e o cozinheiro da família.
Os corpos foram removidos do local de caminhão, a cavalo e de carroça. No topo, o buldogue francês Ortino, presente de um oficial russo com quem Tatiana havia flertado quando ela, Olga e a mãe trabalharam como enfermeiras, atendendo feridos da I Guerra.
MÁQUINA DE PROPAGANDA
Como todos os assassinos, Yurovsky logo descobriu que era mais fácil matar do que se livrar dos corpos.
A mina onde mandou dissolvê-los em ácidos e jogá-los era rasa demais. Foram removidos e e enterrados de novo. Descobertos por iniciativa de um obscuro cineasta em 1979, os restos mortais só foram reconhecidos depois do fim da União Soviética.
Os corpos de Alexei e Maria acabaram em outro local, onde pesquisadores amadores os localizaram em 2007.
A quantidade de lendas sobre sobreviventes, Anastasia em especial, mas também Tatiana, indica o poder da narrativa das princesas lindas e mortas. Ou talvez operações de desinformação para obscurecer o regicídio.
Todos os Romanov foram canonizados em 2000 pela Igreja Ortodoxa Russa, por darem testemunho de fé através da “humildade e cordura” demonstradas em seus últimos anos de vida.
Com os cem anos do massacre, aumentou a quantidade de visitantes à Igreja sobre o Sangue, erguida no terreno da Casa Ipatiev, demolida em 1977 por “falta de interesse histórico” – a culpa mal disfarçada de que falava Ieltsin. A cripta fica onde era o porão. Ao lado, fica uma catedral.
A canonização do czar e de sua infeliz princesa alemã, a portadora do gene da hemofilia transmitido pela avó, a rainha Vitória, contrasta com a imagem de crueldade e devassidão criada e propagandeada nos tempos tormentosos do início do século XX.
Para tentar salvar da hemofilia o único filho homem, herdeiro do trono imperial, Alexandra infamemente se tornou seguidora cega do mais perigosos de todos os gurus, Rasputin.
A figura espantosa do pregador de rua e a máquina de propaganda funcionando em escala industrial abriram caminho a todos os boatos. O mais perverso era o de envolvimento sexual não só da czarina, mas de todas as suas filhas com o monge que precisou ser envenenado, fuzilado (duas vezes) e afogado até morrer, num complô de nobres russos que tentavam salvar a realeza.
A consolidação da ideia de que a imperatriz, religiosa e apaixonada pelo marido e pela família, participasse de atos orgiásticos com o barbudo Rasputin é um dos maiores enigmas em torno da queda da monarquia, da revolução russa e do golpe bolchevique.
Mas a peça que continua a faltar para os historiadores é a ordem de Lênin para eliminar a família Romanov. É completamente impossível que comissários comunistas, por maior poder local que tivessem, tomassem a iniciativa do regicídio.
Como no caso do genocídio dos judeus determinado por Hitler, a ordem para a “solução final” é conhecida em todos os detalhes, menos o documento em si.
MALDIÇÃO DOS ROMANOV
Na Rússia de1917, entre a própria cúpula comunista, havia defensores de um julgamento que expusesse ao mundo os erros nefandos de Nicolau.
Mas o “pedido” do Soviete dos Urais, transmitido por Goloshchiokin, foi aprovado pelo Comitê Central Executivo sobre o qual reinava Lênin.
Goloshchiokin depois disse a Trotsky – antes que ambos caíssem em desgraça – que “Ilitch não queria nenhuma bandeira viva” da monarquia para incitar o povo a se rebelar contra o novo regime.
O povo, evidentemente, estava dominado. Nem que quisesse poderia se revoltar contra a nova ordem.
E é claro que existem lendas e mais lendas sobre a maldição dos Romanov. A Igreja Ortodoxa não aceita a autenticidade dos restos mortais de Alexei e Maria. Houve uma investigação religiosa sobre um possível “assassinato ritual” – subproduto barato da participação de muitos comunistas judeus no regicídio.
Uma pequena amostra do mundo de hiperrealidade que muitas vezes envolve a Rússia. O czar virou objeto de uma espécie de culto. Seus seguidores são chamados de tsarebojniki e fazem uma constante peregrinação a Ecaterimburgo.
Já em Moscou, a múmia de Lênin continua em seu caixão de cristal ao pé da muralha do Kremlin. De seis em seis meses, é recolhida para o banho químico de beleza que há 94 anos mantém as aparências – quase inteiramente artificiais, a esta altura.
Nunca ninguém entra duas vezes no oceano da Mãe Rússia, mas muitas coisas sempre são muito parecidas.