Casal Starmer: madame também recebia verba de milionário
Primeiro-ministro de esquerda, eleito com discurso sobre ética, está enrolado em mordomias, incluindo até roupas para a sua mulher
Imaginem um político com discurso de esquerda e imagem irretocável, um ex-promotor até um pouquinho chato. Muito de sua ascensão foi em razão da posição em defesa da ética na época em que Boris Johnson era primeiro-ministro. Por isso, a onda de revelações sobre Keir Starmer, eleito há menos de três meses, é pior ainda do que se não se passasse por santarrão. Até sua mulher, Victoria, supostamente moderna e independente, recebeu dinheiro para comprar roupas, ter uma personal shopper – alguém que orienta as aquisições de clientes privilegiados de grandes lojas – e até fazer ajustes para parecer impecável.
E impecável ela começou a aparecer, embora toda a imprensa simpática ao Partido Trabalhista tenha se desdobrado em elogiar a discrição da mulher alta, magra, com ótima formação profissional e, inesperadamente, bem vestida. Nada de muito excepcional, em termos de marcas, principalmente levando-se em consideração que sua antecessora, a mulher de Rishi Sunak, Akshata Murty, era uma multimilionária acostumada a usar as mais caras grifes e contratou uma das mais conhecidas stylists do mundo dos muito ricos para ficar bem na foto. Mas tudo o que Victoria passou a desfilar era muito bom.
Especialistas em moda se desmancharam quando Victoria, que tem o direito a usar o título de lady, porque o marido é um cavalheiro do império britânico – ah, a hipocrisia dos esquerdistas… – começou a desfilar elegantemente grifes médias, mas muito adequadas a seu papel e várias de cor vermelha, a do Partido Trabalhista.
Durou pouco: na segunda-feira de manhã, Victoria apareceu na primeira fila de um desfile da Semana de Moda em Londres, usando uma roupa “emprestada” pela estilista, da mesma coleção mostrada na passarela. À noite, tinha sumido de um evento para empresários de moda oferecido pelo primeiro-ministro.
Motivo: nesse interim, foi revelado que não apenas Keir Starmer recebeu o equivalente a 18 mil libras para comprar ternos e até óculos, além de 20 mil libras em hospedagem, mas sua mulher também foi beneficiada pelas mordomias propiciadas por Waleed Alli, empresário e criador de programas de televisão, simpatizante do Partido Trabalhista.
PEGOS NO PULO
É importante notar que as doações não são ilegais, mas devem ser declaradas. As mordomias para Victoria, uma advogada que trabalha com medicina ocupacional no sistema público de saúde, tinham sido escamoteadas.
Numa declaração notável pela linguagem empolada e passiva, destinada a neutralizar os fatos, um porta-voz de Starmer disse: “Buscamos aconselhamento de autoridades sobre a ascensão ao cargo e a partir daí, acreditávamos que o tínhamos seguido. No entanto, depois de novas interrogações este mês, declaramos mais itens”.
Tradução: tentaram esconder a mordomia, mesmo que não fosse ilegal, e foram pegos no pulo.
As mulheres dos primeiros-ministros não têm funções de primeira-dama e geralmente acompanham os maridos (ou esposas, como os cônjuges de Margaret Thatcher, Theresa May e da fugaz Liz Truss) em poucos compromissos. A rainha consorte (ou o príncipe, como no caso do marido de Elizabeth II) exerce as funções cerimoniais de participar da recepção a convidados estrangeiros e acompanhar o monarca em visitas de Estado.
Mas é claro que todo mundo quer ver a mulher do primeiro-ministro bem vestida e bem apresentada – e ainda mais num país onde as integrantes da realeza parecem modelos de capa de revista.
AMIGOS RICOS
Como em muitos outros países, existe uma zona cinzenta a respeito das esposas de chefes de governo numa era em que mulheres profissionais podem ter conflito de interesses com a função dos maridos. Está acontecendo atualmente na Espanha, com um julgamento em que a mulher do primeiro-ministro Pedro Sánchez, Begoña Gómez, responde a acusações de ser excessivamente favorecida por um empresário em mestrados que orientava sobre empreendimentos digitais.
Mas não há nada de cinzento em ver que receber mimos de milionários cria uma imagem de favorecimento indevido e politicamente insuportável. Keir Starmer explorou isso muito bem quando Boris Johnson e sua jovem terceira esposa, Carrie, mudaram a decoração da ala residencial de Downing Street com contribuições de terceiros e aceitaram uma temporada de férias no Caribe a convite de um milionário.
É extraordinária a quantidade de amigos ricos que aparecem quando alguém chega ao topo do poder. E também é extraordinária a tentação de aceitar as benesses que acompanham essa ascensão. Keir Starmer e a mulher têm altos salários e não precisam ter suas roupas bancadas por um milionário amigo. Mas aceitaram mesmo assim.
Starmer está enfrentando uma segunda crise: as críticas internas ao alto salário da sua assessora do serviço público, Sue Gray, de 170 mil libras anuais, um pouco mais até do que o dele. “Estou no controle”, disse ele – o tipo de declaração de quem está perdendo o controle.
Imaginem o que sentem milhões de aposentados ao verem defendidos salários dessa grandeza e as mordomias do casal exatamente no mesmo instante em que o novo governo – de esquerda! – anunciou o corte do subsídio anual para a calefação, uma medida de austeridade que levará muitos idosos a passar frio no próximo inverno, para economizar nas contas altíssimas de energia.
Roupas novas, móveis novos, viagens e outras mordomias, qual é a dificuldade dos ocupantes do poder e seus cônjuges em entender que deveriam pelo menos fingir que são à prova de presentes e outros mimos?
SPONGE CAKE
Além das roupas e dos óculos, Starmer recebeu, quando ainda era apenas membro do Parlamento, mas já com viés de ser o futuro chefe de governo, nada menos que 76 mil libras em ingressos para jogos e shows como o de Taylor Swift e outras mordomias entre 2019 e 2024 – mais do que qualquer outro parlamentar. Tentar corrigir a péssima impressão que isso causa pode deixar uma imagem pior ainda.
Starmer alegou que aceitou ingressos para camarote especial em jogos do Arsenal porque não poderia comparecer como um espectador comum, por questão de segurança, e não seria justo ele não ver o time do qual é um grande torcedor. Também “custaria uma fortuna ao contribuinte” reforçar sua segurança.
Vamos ver como a torcida reage em futuros jogos. Por enquanto, o casal que ocupa Downing Street responde no popular a dois apelidos. Ele, é 2TierKier (uma referência às formas diferentes, ou duas medidas, com que manifestantes de esquerda e de direita são tratados; em inglês, rima). Ela, começou a ser chamada de Sponge Victoria, uma brincadeira com um bolo conhecido dos ingleses, o Queen Victoria Sponge Cake.
Esponja, na gíria, é alguém que vive à custa de outros. No Brasil, o mais próximo seria chamá-la de Mamata da Vitória.
Que tal isso para quem prometia os mais altos valores éticos?