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Armas para todos ou para ninguém. Por que só para bandidos?

Modelo brasileiro de desarmamento da população e criminosos equipados com tudo não existe em nenhum outro país; talvez isso explique por que não funciona

Por Vilma Gryzinski 15 Maio 2017, 09h50
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  • O  lobby anti-armas é provavelmente o maior que existe no planeta. Talvez não perca sequer para o poderoso movimento em favor da legalização das drogas. Ser contra aquelas coisas horríveis que matam pessoas ainda soa mais moralmente justificável do que ser a favor daquelas coisas incríveis que matam pessoas.

    Intelectuais, policiais, acadêmicos, especialistas, jornalistas, analistas, psicanalistas e, naturalmente, artistas, sempre dizem como ter acesso a qualquer tipo de arma é uma coisa moralmente condenável e tecnicamente estúpida. Só brucutus poderiam pensar o contrário.

    Cheios de boas intenções, às vezes alguns desses formadores de opinião dizem, do alto de sua condescendência , que “compreendem” alguns dos  brucutus que, por diferentes motivos, acreditam no direito natural à defesa das suas casas e das suas vidas.

    Mas logo explicam que os riscos aumentam pavorosamente quando qualquer cidadão de comprovada honestidade tem acesso a armas de fogo, brancas e, talvez, vermelhas ou cor-de-rosa. É um mantra unânime dos bem intencionados que, justamente por causa de seus bons propósitos, misturam dados reais com falsos argumentos.

    RISCO AUMENTADO

    Tirando o pavorosamente, têm razão em vários aspectos. Quanto maior o acesso a armas de fogo, maior o risco de acidentes, mesmo quando seus donos são treinados na posse responsável. Brigas de trânsito, ciúmes conjugais, discussões de vizinhos, desavenças de bar, entre outros crimes do tipo,  igualmente tendem a redundar  em violência assassina.

    Também existe um risco aumentado de suicídio. Em Israel, por exemplo, num ano sem guerra como 2016, o maior fator de morte para os integrantes das Forças Armadas foi o suicídio: 15 num total de 41 (acidentes, doenças e mortes em operações foram as outras causas). Foi uma incidência baixa.

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    Israel reduziu em 57%  o número de suicídios nas Forças Armadas desde 2006, quando passou a proibir que os jovens que prestam o serviço militar obrigatório – ou seja, todos os aptos e não ultra-ortodoxos – levassem as armas para casa, uma prática comum em toda a conturbada história do país desde sua criação, em 1948.

    Por causa de atentados terroristas recentes, com ataques a faca, a proibição atualmente é menos rígida.

    A possibilidade comprovada de que o acesso a armas aumenta suicídios e crimes aleatórios precisa ser pesada com muito critério por aqueles que querem tirar conclusões independentes.

    PAUS DE FOGO

    Cultura, história e formação social definem a facilidade ou as restrições no acesso a armas. Com exceção da Suíça, que já é uma exceção em si, na maioria dos países da Europa Ocidental as restrições são bem altas.

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    São países em que, historicamente, as armas eram exclusivas da nobreza. Em troca do privilégio, os nobres tinham que ir à guerra ou dar proteção a seus súditos ou servos. Até hoje, quando se fala de reações da plebe contra o pensamento das elites, como o Brexit, é usada a expressão “camponeses com forcados”. Nas eventuais rebeliões, não havia outros meios.

    Os nobres também tinham a exclusividade da caça em suas reservas. Por isso, os “camponeses” desenvolveram métodos furtivos para reforçar o cardápio. Quando puderam, compraram seus paus de fogo. Na França, ainda existem muitas armas de caça, sujeitas a controles severos.

    O massacre de 16 criancinhas e uma professora numa escola em Dunblane, em 1996, na Escócia, teve como consequência duas leis que levaram a praticamente um desarmamento total na Grã-Bretanha.

    No reino britânico, policiais, bandidos e até terroristas usam armas de fogo raramente. De março a março, entre 2015 e 2016, Na Inglaterra, houve ao todo sete incidentes em que membros da polícia sacaram suas armas e fizeram disparos. Sete.

    Ao todo, existiam 5 639 policiais autorizados a portar armas no período mencionado.  Nas operações  de reação ou interceptação de terroristas são usadas as unidades especiais que têm armamentos pesados e treinamento específico.

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    MISTURA AMERICANA

    De forma geral, em qualquer lugar do mundo quando mais forte e centralizado o sistema de governo, menor é o acesso a armas.

    A grande exceção, até hoje em andamento, aconteceu nos países do Novo Mundo. A conquista, a colonização, a imensidão dos espaços, as feras, as populações nativas a serem dominadas, a impossibilidade de centralizar tudo até para os mais refinado dos controladores, a coroa da Espanha, criaram uma situação sem precedentes.

    Nos Estados Unidos, o sem precedentes se uniu ao impossível. Um país criado por puritanos, que saíram da Inglaterra onde eram perseguidos por praticar uma forma pura e total de cristianismo, produziu gênios de uma espécie de iluminismo autóctone.

    Misturados a aventureiros que queriam faturar, primeiro com o comércio de peles da infindável fauna nativa, depois com qualquer coisa que redundasse em dinheiro arrancado com um trabalho duro e selvagem – e sob a proteção obrigatória dos trabucos.

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    Ao contrário de outra colônia, onde a riqueza do açúcar produzia lucros imediatos e de fácil trânsito. Celso Furtado explicou esta parte de forma infinitamente melhor e mais sofisticada.

    A mistura americana redundou numa constituição na qual o segundo artigo, num total original de dez, estabelece em linguagem indireta e algo misteriosa: “Uma milícia bem regulamentada sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de ter e portar armas não será infringido”.

    LÁGRIMAS SENTIDAS

    A Segunda Emenda garante isso até hoje, com todas as vantagens e desvantagens.  Com o apoio da maioria da população, em graus variados, nem o poderoso lobby anti-armas consegue contorná-la.

    Em alguns casos, cria até um certo fanatismo, com americanos comuns se reunindo em pequenas cidades onde o porte ostensivo é permitido só para mostrar suas Glocks e seus fuzis. O que acontece durante estes rituais no Templo da Segunda Emenda? Nenhum disparo, evidentemente. Tiro, para os honestos, só nos centros de treinamento.

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    A “cultura de armas”, curiosamente, é alimentada por atores, diretores, produtores e autores que condenam o uso de armamentos. Exceto pelos filmes dirigidos ao público infantil, juvenil ou feminino romântico, praticamente todo o cinema americano existe em função de uma única narrativa: no final, é uma arma que produzirá o desenlace.

    Devido a suas características  históricas únicas, os americanos de certa forma aceitam uma barganha. Por um direito que a maioria considera inalienável, convivem com índices de violência maior do que a de outros países avançados e com episódios “epidêmicos”, como as matanças em escolas e outros locais simbólicos.

    Para tristeza de políticos que podem ser todos simbolizados pelo ex-presidente Barack Obama, com suas lágrimas sentidas nos casos hediondos ocorridos durante seu governo. Se pudesse, Obama teria reduzido os homicídios  nos Estados Unidos a níveis japoneses: de 3,9 por cem mil habitantes para 0,3.

    SEM PAGODE

    Mas os Estados Unidos nunca serão o Japão. Nem terão prisões como as japonesas, onde impera o seguinte regime: oito horas de trabalho por dia em total silêncio, também é proibido conversar nas celas, falar só durante o horário a recreação – uma hora por dia.

    Os apenados japoneses em geral emagrecem, embora as refeições preencham as necessidades obrigatórias. Mais do que as condições de encarceramento, pesa a exclusão familiar e social. A vergonha por ter um condenado em seu meio pode levar a que o criminoso seja  “apagado”.

    As visitas, só permitidas a familiares diretos, simplesmente desaparecem. Ah, sim: nas prisões japonesas em geral não existem drogas, sexo com visitantes, churrasco, armas, rebeliões, decapitações, rap e pagode.

    Também não existem escravização de presos por presos, imundície, privilégios espantosos para poucos, degradação terminal. Há queixas de rigor abusivo pelas autoridades carcerárias e excesso do uso de confinamento solitário. O crime organizado mantém sua influência atrás das grades, silenciosamente. Sem pagode.

    CRIME DESORGANIZADO

    Continuando na comparação  dos índices de homicídio por cem mil habitantes, temos a seguinte situação. Honduras, 84. El Salvador, 64. Venezuela, 62. O Brasil tem 24. O único país fora da América Latina que entra na lista dos piores é a África do Sul, com 33.

    As características comuns são evidentes. Instituições fracas, democracia de fachada, sociedade civil instante e desamparada, populações desinformadas, traficantes que praticamente impunemente a violência extrema em suas disputas, corrupção generalizada, inclusive em organismos policiais, traficantes que praticam a violência impunemente em suas disputas. Para os poderosos, tudo; para o resto, nem a lei.

    O tráfico de drogas existe em todos os lugares do mundo, mas só na América Latina a disputa territorial inerente a ele e a anomia institucional impulsionam níveis orgásticos de violência.

    O modelo de criminosos poderosos e cidadãos acuados, imperante no Brasil e outros países similares, é um exemplo de fracasso. Mesmo quando as autoridades diminuem notavelmente os índices de criminalidade, persiste a sensação de insegurança, medo e desamparo.

    O crime organizado é forte e o desorganizado também. Criminosos têm um cardápio variadíssimo de armamentos, de um .38 básico aos mais sofisticados fuzis semi-automáticos. Qualquer “assaltante de sinal” vai bem montado para sua atividade.

    Qual  é a influência sobre uma criminalidade desse nível da posse ou do porte controlados de armas pela população com atestado de honestidade? Cidadãos diferentes podem ter opiniões diferentes.

    GATILHO DE MALUCOS

    Muitos preferirão não ter arma nenhuma, mas admitem que os que assim quiserem as tenham, principalmente para a defesa da casa. Outros acham melhor não conviver com motoristas malucos com dedo no gatilho. Alguns não confiam em si mesmos com este instrumento de poder a seu alcance.

    Os que já sentiram o gosto metálico do medo que olhar para uma arma pelo lado do cano provoca muitas vezes tendem a não querer ver essas coisas nunca mais. Ou, ao contrário, cogitam em, pelo menos, zerar o jogo da próxima vez.

    O poder provido pelas  armas é tanto que homens jovens com acesso a elas, sejam bandidos ou membros de grupos rebeldes, precisam exibi-lo sem parar. A dança do Kalashnikov ou o rap do AR-15 alegra os sem-lei e intimida os sem-proteção.

    A expressão da opinião da maioria dos brasileiros sobre o uso de armamentos pela população aconteceu no referendo de 2005. Foi ignorada e o acesso às armas se tornou praticamente impossível para um cidadão comum.

    Mas os sapientes formadores de opinião continuam a ter chiliques à simples ideia de que pessoas treinadas e testadas cheguem perto de um instrumento que, na maioria dos casos, jamais utilizarão contra alvos reais.

    “Eu odeio armas. Tenho ataques diante delas”, já disse o ator Matt Damon, um dos  maiores campeões de balas disparadas por filme, com a tranquilidade de quem vive num país com o índice de homicídios dos Estados Unidos e com as barreiras de proteção erguidas pela fama e pelo dinheiro.

    MUNDO IDEAL

    Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York e um dos mais poderosos integrantes do poderosíssimo lobby anti-armas, colocou 50 milhões de dólares em um único ano, 2014, em campanhas de sua causa preferida. Tem  intenções dignas de respeito. Está no mercado de ideias, como todo mundo, apesar das vantagens fornecidas por uma fortuna de 48 bilhões de dólares e um império de comunicações.

    No Brasil, muitos especialistas no assunto dizem que as armas aumentam irrevogavelmente o risco a que seus portadores se expõem. Imaginam, por exemplo, que um assaltante aborde sua vítima e “veja” que está armada, passando em ato contínuo a fuzilá-la.

    Os únicos exemplos de situações remotamente parecidas na prática acontecem com policiais que são assaltados. Sabendo que serão mortos assim que identificados, respondem com suas armas de serviço. Em alguns casos, matam os agressores. Para imensa e passageira alegria de tantos que, nem se pudessem legalmente, teriam armas. O senso de justiça está entranhado ao direito natural.

    Num mundo ideal, todos os criminosos, presos e condenados, se arrependeriam de seus crimes, tentariam compensar as vítimas e a sociedade. Regenerados, levariam vidas virtuosas. Num mundo ideal, obviamente, só existiriam armas de museu.

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