“Se temos controle sobre nossa riqueza, seremos ricos e livres. Se a riqueza tem controle sobre nós, somos realmente pobres”.
Steve Bannon tem uma fortuna calculada em 48 milhões de dólares. Tem também paixão por Edmund Burke, o filósofo irlandês autor da frase acima.
Ontem, Bannon quase derrubou a internet e ofuscou o discurso de Joe Biden no final da convenção democrata (“Serei um aliado da luz, não das sombras”, disse à la Guerra nas Estrelas).
Bannon possivelmente se via como um aliado da luz operando no mundo das sombras, a arquitetura das entranhas do mundo digital onde esculpiu a candidatura de Donald Trump.
A magia negra que os operadores de campanhas eleitorais ganhou um novo significado pós-Bannon.
O feitiço se voltar contra o feiticeiro era praticamente um final consumado quando ele entrou no governo com seu estilo esbaforido; o hábito de usar duas camisas, uma por cima da outra; a aparência física de homens a cinco minutos de um enfarto e uma planilha com as promessas de campanha a serem cumpridas.
Acima de tudo, controlar a imigração clandestina e peitar a concorrência da China.
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Clique e AssineComo é comum entre os que se julgam imbuídos de uma missão quase sagrada, ele queimou os navios quando resolveu se encrencar justamente com Jared Kushner e Ivanka Trump. Foi rapidamente expelido.
Ao ser conduzido ontem da cadeia para a primeira audiência diante de um juiz, estava com cabelos mais comprido, as duas camisas de sempre, uma máscara na mão e ânimo belicoso de sempre.
Declarou-se inocente das acusações de estelionato e lavagem de dinheiro envolvendo desvios para uso pessoal de dinheiro arrecadado com uma campanha pelo GoFundMe para construir trechos do muro prometido por Trump na fronteira com o México.
Vai ter julgamento, portanto. E será um espetáculo garantido, com personagens já prontinhos para entrar numa série de televisão – aliás, uma das fontes da fortuna de Bannon, que comprou uma participação no eterno Seinfeld.
O principal envolvido é Brian Kolfage, um veterano da Força Aérea que perdeu as duas pernas e a mão num ataque de morteiro no Iraque.
Só escapou devido ao atendimento em tempo recorde. Passou um ano em reabilitação, já com o Purple Heart, a medalha em forma de coração, com um fita roxa, reservada aos feridos em combate.
Casado com uma loira de parar o trânsito, foi dando sinais de padrão de vida de luxo, incluindo lancha e viagens, à medida em que chegavam as contribuições espontâneas para a construção do muro – num total de 25 milhões de dólares.
A mulher, Ashley, mostrava a ostentação em fotos de biquíni no Instagram.
Quando o GoFundMe, que só existe porque controla a ficha das campanhas, apertou Kolfage sobre o destino das contribuições, ele apelou a Bannon.
Segundo a acusação, empresas de fachada passaram a ser usadas para beneficiar Kolfage, num total de 350 mil dólares, fora 20 mil para despesas mensais.
Bannon desviou mais de um milhão de dólares para suas próprias despesas, segundo a acusação do distrito sul da Procuradoria Federal em Nova York, liderada por Audrey Straus, veterana promotora de 73 anos que largou a aposentadoria e um penoso tratamento por câncer para substituir o titular demitido pelo governo Trump.
Foi ela quem indiciou Ghislaine Maxwell, a “agenciadora” de menina para o abusador serial Jeffrey Epstein, que se suicidou na prisão.
Cair na rede desse pessoal é garantia de encrenca multiplicada por cem.
Bannon, com certeza, vai brigar.
Ele foi preso no iate do bilionário renegado Guo Wengui.
Guo deve ser o exilado político mais rico do mundo. Mora numa cobertura de 67 milhões de dólares, o iate vale 28 milhões (está à venda), só usa sapatos Louis Vuitton e já disse que tem 60 ternos Brioni feitos sob medida.
Seu mantra: “Sou budista, não ligo para coisas materiais”.
O governo chinês o acusa de falcatruas, o mesmo plano ao qual Steve Bannon foi rebaixado agora, de forma espetacular.
Especialmente para um homem que, depois de eleger Trump – como dizia, irritando o presidente-, e ser expelido do governo, passou a se promover como o mentor intelectual de movimento populista internacional com base num tripé: capitalismo, nacionalismo e valores judaico-cristãos.
Como se vê, Bannon é – ou era – um dos grandes combatentes da guerra cultural.
Ou o confronto intelectual, e eleitoral, entre as ideias que predominam da direita tradicional às esquerdas e o novo conservadorismo, ainda mal esboçado, mas já ilustrado por guinadas espetaculares como a eleição de Donald Trump e também a de Jair Bolsonaro.
O arco da nova direita abarca ainda a Inglaterra do Brexit segundo Nigel Farage, a Hungria de Viktor Orbán, a Itália de Matteo Salvini e a França de Marine Le Pen.
São muitos e diferentes gatos num saco só. Com sua ambição e audácia, tão americanas, Bannon achava – ou ainda acha – que poderia estruturar “o movimento” contra o que chama de “Partido de Davos”, os muito ricos e muito poderosos que deixam apenas migalhas de capitalismo para o resto.
Os adeptos, conscientes ou não das implicações do “movimento”, chamam os adversários de globalistas.
Tradição, religião, estado-nação e capitalismo sem monopólios ou concentrações indecentes de dinheiro e poder são as armas na guerra cultural contra os adversários.
Com mais tempo livro para pensar, e um tipo de perfil que não parece se deixar abalar por embates com a lei, Bannon provavelmente vai continuar a batalha.
E lutar contra o rótulo humilhante de estelionatário e abusador dos bons e bravos americanos, os “deploráveis” e esquecidos pelas elites dos quais se declarava defensor, que puseram a mão no bolso e contribuíram para um muro fictício.
Fora um pequeno trecho adjacente a uma propriedade particular, o muro nunca aconteceu.