Há muitas formas de desqualificar o discurso feminino e silenciá-lo. Desde a Antiguidade Clássica, como mostra a historiadora britânica Mary Beard no recém-lançado Mulheres e Poder – Um Manifesto (Crítica), mulheres são comparadas a animais de raciocínio reduzido, assumem traços andróginos e se veem confinadas, por homens, ao espaço privado. Criado com a contribuição de diferentes movimentos e ativistas ao longo de anos, o glossário feminista ajuda a identificar táticas recorrentes de depreciação, ao nomeá-las. Lá estão termos como gaslighting (quando se tenta transformar a mulher que fala em louca), derivado do filme À Meia Luz (Gaslight, 1944), slutshaming (quando uma mulher é rebaixada como “vadia”), manterrupting (quando sua fala é interrompida a todo tempo) e mansplaining (quando um homem se põe a explicar um assunto que a mulher com quem fala domina mais que ele). Na política, há ainda outra estratégia recidiva, com raízes na mitologia grega: a analogia que se faz entre representantes femininas e a górgona Medusa, aquela da cabeleira de serpentes.
A brasileira Dilma Rousseff, diz Mary Beard no novo livro, foi vítima desse tipo de ataque. A ex-presidente é citada ao lado de nomes importantes da política mundial, como Angela Merkel, Hillary Clinton e Theresa May – todas em algum momento, por jornalistas, eleitores ou rivais políticos, comparadas com a horrenda figura que transformava gente em pedra apenas com o olhar.
O caso de Dilma, Mary Beard exemplifica com a foto feita da petista diante do quadro Medusa Murtola, na abertura de uma mostra do italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), em 2012. A imagem pautou diversos veículos e rodou a internet.
“Em 2017, uma caricatura que circulou na conferência do Partido Trabalhista representava uma imagem da ‘Maydusa’, com cobras e tudo. Mas a sra. May se saiu bem, se comparada a Dilma Rousseff, cuja sorte foi bem pior quando era presidente do Brasil e precisou inaugurar uma exposição de Caravaggio. A Medusa, é claro, lá estava, e Rousseff, de pé na frente do quadro, revelou-se uma irresistível oportunidade de foto”, escreve a scholar de Cambridge.
Mary Beard talvez não tenha conhecimento, mas esta não foi a primeira vez que Dilma foi relacionada a Medusa – nem a última, uma rápida pesquisa no Google traz outros cruzamentos. Em 2010, o perfil fake Dilma Medusa foi criado no Twitter para bater na então presidente, com posts ofensivos que se pretendem escritos pela petista, como “Não mudei a cara, não tenho duas, porque se tivesse outra, com certeza não usaria essa. #DilmaNão #VIXE”.
Não mudei a cara, não tenho duas, pq se tivesse outra, com certeza não usaria essa. #DilmaNão #VIXE
— Dilma Medusa (@DilmaMedusa) October 11, 2010
O que poucos sabem é que Medusa foi, ela própria uma vítima do machismo. Das muitas versões do mito, uma das mais difundidas é a de que Medusa, então uma bela garota, foi violentada por Poseidon em um templo de Atena, “que prontamente a transformou, como punição ao sacrilégio (atentem que a punição foi a ela), numa criatura monstruosa com o poder mortal de fazer virar pedra quem quer que olhasse para seu rosto”. Foi a Atena que Perseu entregou, como presente, a cabeça de Medusa, depois de cortá-la, em um ato considerado heroico.