Seu marido vê uma louca. Seu cunhado vê um fetiche. Sua irmã vê um mistério a resolver. Todas as três visões expressas no livro A Vegetariana (Tradução: Jae Hyung Woo; Todavia; 176 páginas; 49,90 reais), lançado por aqui neste mês, foram catapultadas por uma escolha aparentemente trivial da heroína Yeonghye: deixar de comer carne. A história que conduz o leitor a um violento espiral de tensões familiares rendeu à autora Han Kang o prestigiado prêmio Man Booker Prize — o primeiro dado a um sul-coreano, e também à sua tradutora para o inglês, Deborah Smith.
O que foi perdido da tradução (ou ganho, em quantidade de palavras) virou alvo de grande questionamento entre estudiosos das letras. O jornal americano Los Angeles Times publicou, um ano depois de o livro ser lançado nos Estados Unidos, um artigo do tradutor Charse Yun criticando a tradução premiada de Smith. Segundo ele, o excesso de adjetivação e outros recursos para suscitar empatia, ou tornar a obra compreensível ao leitor americano, se desviava do âmago da obra: mostrar o mutismo e o esvaziamento de sentido de uma rendição silenciosa.
Voltando ao enredo: quando Yeonghye decide parar de comer carne, seus familiares, que vêem estranheza em seu hábito e assistem a moça emagrecer rapidamente, têm uma reação violenta e se recusam a deixar que ela siga com os novos hábitos. Ela responde com recusa, silêncio, frases curtas. E assim se dá, grosso modo, a relação entre as personagens.
Para Yun, o que considera excesso na edição americana ameniza ao leitor a angústia de quem vive privado socialmente das decisões mais simples. Nesse ponto, sorte a nossa. A tradução para o português brasileiro de Jae Hyung Woo consegue recriar o cenário com frases curtas, simples, que não deixam as realidades descritas a meia volta ao mundo de distância e são facilmente palatáveis aos leitores menos vorazes.
Acompanha-se a tormenta de Yeonghye, dos sonhos crus de carnificina que a levam ao vegetarianismo à crueldade com que seus pares tentam voltar a conformá-la ao que é “normal”, com uma narrativa enxuta e precisa. A busca da personagem por redenção, reagindo à violência com dietas cada vez menos usuais — por fim, luz e água, como um vegetal — não precisa de mais contornos para despertar algum pequeno sentimento de identificação. É a chave que sua irmã traz no terceiro e último capítulo: “Seu corpo é a única coisa à qual você pode fazer mal. É a única coisa com a qual você pode fazer o que quiser. Mas nem isso te deixam fazer.”