Somos condescendentes com as barbáries aos negros?
Em artigo à coluna, cientista político e doutor em administração pública Cassio França afirma que o não direito à vida ameaça mais pessoas negras no Brasil

Qual é o limite entre aceitar conviver com desigualdades estruturais e ser condescendente com as barbáries que assolam a sociedade brasileira? Aceitar conviver e ser condescendente são sinônimos?
Vivemos em um país no qual não é difícil encontrar exemplos que explicitam desigualdades. Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), mais da metade da população brasileira — cerca de 125 milhões de pessoas — convive com algum grau de insegurança alimentar. Isto é, seres humanos que não sabem se terão alimento em quantidade suficiente num futuro próximo, não se alimentam com todos os nutrientes necessários ou passam fome; estes últimos somam o alarmante número de 33 milhões de brasileiros.
Conforme dados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (Vigisan), a fome se manifesta de forma mais presente em famílias com maior número de crianças, mulheres e pessoas pretas.
Estamos falando de direito à vida.
Da mesma forma, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que o Brasil teve 47.508 mortes violentas intencionais em 2022. A título de comparação com dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o país figura entre os dez mais violentos. Informações como essas também nos remetem ao direito à vida.
Em ambos os estudos, um olhar cuidadoso nos leva a pelo menos mais uma conclusão: o não direito à vida ameaça mais pessoas negras. O Anuário, por exemplo, aponta que 76,5% dos homicídios vitimaram negros, independentemente do tipo de ocorrência registrada.
A vida é o maior bem que o ser humano possui. Atentar contra a vida demonstra altos índices de incivilidade.
A sociedade brasileira aprendeu a conviver com a barbárie e, sobretudo, contra a população negra. Até que ponto podemos conviver com essa situação sem nos considerarmos condescendente com ela?
Se governantes, legisladores, magistrados, empresários e formuladores de iniciativas de interesse público consideram que o direito à vida importa, independentemente da raça/etnia em que a vida se reconhece, então é uma condição inegociável, sine qua non, propor projetos e ações que contemplem a diversidade da população brasileira.
De acordo com Censo feito pelo Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (GIFE), de 1.015 iniciativas filantrópicas mapeadas em 2020 — executadas com Investimento Social Privado (ISP) por instituições associadas ao GIFE — 40% tinham relação transversal com temas sobre diversidade e equidade, sendo a pauta racial o maior destaque.
Estamos frente a uma sociedade que ainda não foi capaz de demonstrar — pelo menos em números — que a aceitação não é condescendência. Que não importa a raça e a etnia para amar o próximo.
Reflexões como estas estarão em destaque em agosto, durante o “Mês da Filantropia Negra”/“Black Philanthropy Month (BPM)”. A edição deste ano do BPM tem como tema “Love in action – Amor em ação: Cultivando o amor como ferramenta de liberdade e ação social”.
O tema do Mês da Filantropia Negra 2023 remonta ao resgate do significado da filantropia como “amor pela humanidade”. No contexto da filantropia negra, destaca-se o poder do amor-próprio negro como um ato que promove direitos humanos, impulsionando a justiça racial, social, econômica, de gênero e ambiental para as comunidades negras em todo o mundo.
A manifestação prática do compromisso com o outro, do amor à humanidade, se concretiza em decisões dentro das organizações. A execução de ações práticas que enfrentem as estruturas de desigualdades é a real manifestação da não condescendência à barbárie.
O GIFE defende que todas as organizações estabeleçam metas para, de fato, reverterem as disparidades entre pessoas brancas e não brancas. Somente com propósitos objetivos e o compromisso diário de cumpri-los é que vamos poder dizer que não pactuamos com o racismo. E que estamos efetivamente comprometidos com o artigo 5º da Constituição Federal: “todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

* Cassio França é secretário-geral do GIFE [Grupo de Instituições, Fundações e Empresas — referência nacional em filantropia e Investimento Social Privado], cientista político pela Unicamp e doutor em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas, com pós-doutorado na London School of Economics and Political Science