Escrevi para esta coluna, em março deste ano, por ocasião dos 60 anos do golpe militar de 1964, que a República no Brasil era uma sucessão de golpes e impunidades de militares envolvidos em arroubos antidemocráticos. Da proclamação em 1889, passando pela revolução de 1930, do Estado Novo à tentativa de não permitir a posse de Juscelino Kubitscheck em 1955, aportando, claro, em 1964 com os longos 21 anos de Ditadura militar – apenas para citar os mais conhecidos. Em todas essas ocasiões, estivemos sempre à mercê de uma ruptura antidemocrática, todas elas com militares que não se contentavam em exercer suas funções, mesmo com múltiplos privilégios de carreira.
Desde 1988, contudo, parecia que se escreveria outra História, desta vez com maior clareza do valor do Estado democrático de Direito. Pelo jeito, muitos foram os erros. E ao olhar em retrospecto talvez isso fique claro. Começar por apontá-los seja prudente para entender o caminho até aqui. O mais evidente desses erros, parece-me, é o de que após a celebração – justa e necessária, frise-se – de uma constituição cidadã, tenha-se ofuscado o dia seguinte. É como se todos os problemas tivessem sido resolvidos. É bem verdade que a Constituição de 1988 é um marco importante, mas depois dela fez-se tolerâncias demais ao passado sombrio pelo qual o Brasil havia passado.
Não há dúvida de que havia na mesa outra agenda, que no Brasil sempre se sobrepõe às demais, que é a economia e seus percalços. Faltou aos democratas de então, que junto à conquista do fim da inflação, à instauração do Real e às mudanças estruturais do Estado, tivessem feito uma passagem mais enfática pelas lembranças horríveis dos anos de chumbo. Achava-se que não era o momento de mexer com essas questões, que era preciso olhar para frente, planejar e executar um futuro – aquele do Brasil grande e sempre pronto a ser uma potência – e deixar que o passado ficasse no passado. Ledo engano, claro.
Como é possível pensar e ter um futuro democrático sem educar os que não viveram os horrores de uma Ditadura? Como foi possível deixar que os que viveram aqueles anos – muitos deles e até hoje e cada vez mais nos últimos anos – acreditassem que aquele foi um momento bom de nossa História? Buscou-se, infelizmente, o caminho da complacência. Se este era o caminho possível, é preciso dizer que ele nos custou caro.
Fatos importantes foram minimizados e algozes foram transformados em seres afáveis, todos à espreita para voltar a ser o que sempre foram: antidemocráticos, autoritários e complacentes com temas caros à nossa história, como os direitos humanos, bem como com pautas importantes do século XXI, como o meio ambiente e as mudanças climáticas. Estavam todos calados e prontos para dizer o que de fato sempre pensaram, que “bandido bom é bandido morto” e que aquilo que importa mesmo é o tal progresso e que se dane floresta e tudo que tenha a ver com ela.
Não é possível esquecer que Delfim Netto foi alçado a guru resolvedor dos problemas da República e transformou-se isso em algo normal. Quase passou despercebido quando ele disse, em entrevista em 2021, que sim, assinaria o AI5 de novo, se fosse preciso. Aceitou-se que apenas 10 anos depois da redemocratização fosse criado o Ministério da Defesa, enfim chefiado por um civil, já no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Deram voz a quem calou muitos – e para sempre – os que lutaram contra a ditadura, como o tenebroso coronel Carlos Brilhante Ustra. Entrevistado em 2014, o torturador “falou sobre seu livro, seu dia a dia agitado e sua vida normal”, 30 anos depois do fim da ditadura, pouco antes da morte do militar, em 2015, aos 83 anos de idade. Com pura complacência, aceitou-se que Bolsonaro atacasse a República por quase duas décadas, prometendo uma guerra civil “que matasse uns 30 mil”, dizendo que era preciso fuzilar o presidente em exercício e chamando, no plenário da Câmara, o próprio Ustra de herói, além de outros adjetivos que carecem de estômago demais para repetir.
Bolsonaro, claro, saiu ileso do ocorrido como havia saído em 1999 quando das declarações estapafúrdias sobre os fuzilamentos que desejava pôr em prática. Quem o havia salvado fora Michel Temer, à época presidente da Câmara dos deputados, o mesmo que o salvou em 2021 quando, em plena presidência da República, Bolsonaro continuava a atacar os poderes e desferia suas bravatas contra o Supremo Tribunal Federal.
Por quase 30 anos esperou-se a abertura de uma comissão da verdade, quando já era tarde demais – embora nunca seja tarde para punir quem comete barbáries – porque, àquela altura, muitos já estavam pensando como Bolsonaro, que amealhava desde 2014 multidões e começava a ser levado a sério. Havia ficado para trás uma política de memória, que fosse propagada nas escolas, nas artes e instituições de todo tipo, a fim de repetir, assim como bradava Dom Paulo Evaristo Arns que “Ditadura nunca mais”.
Muitos levaram na brincadeira o tal deputado do baixo clero, que prometeu e quase dobrou a promessa de “fuzilar” os oponentes. De alguma forma, acreditava-se que estava tudo bem. Era – ao menos agora é possível dizer – óbvio que não se estava livre do passado, ainda mais com o que carregamos na nossa História.
Neste momento, parece-me, estamos na iminência de um momento histórico de punição que deve ser não só exemplar, mas cultuada como um marco em defesa da democracia. Não podemos cometer de novo o erro de deixar passar o golpismo ou de levá-lo na chacota sem dar o devido nome e punição a quem comete crimes.
Temos de pensar seriamente para onde temos caminhado. E não adianta apenas o poder judiciário sentenciar e punir, embora seja premente fazê-lo. É importante não levar a sério quem compactua com o golpismo. Porque se no passado foi dado lugar a Ustra, agora é a Bolsonaro, que pede “a aceitação da democracia”. Se era Delfim Netto ou políticos nada afeitos à democracia, agora levamos a sério Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, como um democrata sério, mas cujas atitudes em redes ou em carros de som dizem totalmente o contrário. De bons consultores e gestores abeis, o sepulcro da democracia está cheio. Sem isso, não adiantará dizer que a Democracia é o regime mais adequado e mais justo, mesmo que nem sempre se cumpra seu intento, porque as gerações futuras não nos levarão a sério.
* Rodrigo Vicente Silva é mestre e doutorando em Ciência Política (UFPR-PR). Cursou História (PUC-PR) e Jornalismo (Cásper Líbero). É editor-adjunto da Revista de Sociologia e Política. Está vinculado ao grupo de pesquisa Representação e Legitimidade Democrática (INCT-ReDem). Contribui semanalmente com esta coluna