“Não há dinheiro para pagar precatórios”. Eis é a maior das fake news do atual governo.
Precatórios são ordens emanadas pelo Poder Judiciário, ao fim de um (longo) processo judicial, para que o Estado pague seus credores em decorrência de arbitrariedades, ilegalidades e danos em geral. Os precatórios federais sempre foram pagos e não há estoque a ser sanado. Por esta razão, agências de rating equipararam o risco de pagamento de precatórios federais ao risco soberano do país, ou seja, ao mais alto grau de credibilidade.
No entanto, desde julho 2021, o presidente Bolsonaro passou a bradar que o pagamento de precatórios levaria a “parar tudo no Brasil”. O ministro da Economia, simultaneamente, reverberava: “Se entrarem os precatórios, não há dinheiro para expandir as vacinas”, apelidando-os de meteoro a atingir as contas públicas de forma que faltaria “dinheiro para pagamentos até de salários”. E de tanto repetir que a máquina estatal entraria em colapso, o governo logrou promulgar uma Proposta de Emenda à Constituição, institucionalizando o calote nos seus credores. A Constituição da República foi alterada impulsionada por uma fake news, e, a se manter esse estado de coisas, a democracia sofre um duro golpe.
Fake news pois durante a tramitação da referida PEC, o caixa do Tesouro Nacional se manteve positivo em mais de R$ 1,5 trilhão, a arrecadação federal superou sucessivos recordes, com superávit superior a R$ 100 bilhões. E, de sua promulgação para hoje, o governo encontrou dinheiro para pagar mais de R$ 300 bilhões em novas despesas em ano eleitoral.
Não apenas o funcionamento da máquina estatal, o pagamento de funcionários e o suprimento de vacinas seguiu regularmente, como o governo encontrou dinheiro para engordar o Auxílio Brasil em R$ 51 bilhões, abrir mão de quase R$ 100 bilhões em desonerações fiscais, reduzir em R$ 16,6 bilhões a arrecadação de IPI sobre os combustíveis, perdoar R$ 38 bilhões em dívidas do FIES, destinar R$ 1,2 bilhão ao vale-gás, prorrogar isenção do IPI para taxistas e PCDs (R$ 1,9 bilhão), ampliar crédito de ME e EPP’s em R$ 50 bilhões, engordar o Fundo Eleitoral em R$ 5 bilhões, entregar R$ 16,5 bilhões aos deputados (emendas do relator) e R$ 3,2 bilhões a título de Emendas PIX.
E o pacote de bondades da semana que passou, apelidado de Emenda Eleitoral, custará mais de R$ 50 bilhões. São mais de R$ 300 bilhões que, em um passe de mágica, surgiram para fazer face a toda sorte de novos gastos, nitidamente eleitoreiros. Mas dinheiro para pagar os R$ 50 bilhões de precatórios que podem ser inadimplidos em 2022, não há.
A repetição constante de que o Estado iria à falência ao pagar dívidas judiciais levou à aprovação da “PEC dos Precatórios”, ou “PEC do Calote” (subdividida nas emendas constitucionais 113 e 114/21), veiculando limite ao pagamento dos precatórios. A bola de neve criada com o inadimplemento nos precatórios levará a um default acumulado em R$ 112,9 bilhões já em 2023, podendo alcançar mais de meio trilhão de reais ao final dos cinco anos previstos de vigência da norma (como indicam estudos do Instituto Fiscal Independente).
O abalo na credibilidade do país não tardou a surgir. De 31 de julho de 2021, data em que foi anunciada a intenção de não quitar os precatórios, até o início de 2022, a curva de juros de longo prazo cresceu mais de 6% a.a. – um acréscimo anual da ordem de R$ 300 bilhões ao ano à dívida pública. O custo de um país que não honra suas obrigações e usa notícias falsas para minar a democracia.
Perante o Judiciário, o tema é bastante conhecido. Tentativas (afastadas) de postergar o pagamento de precatórios receberam a alcunha de “calote” pelo Supremo Tribunal Federal (min. Ayers Britto, ADIs 4357 e 4425). Na oportunidade, o ministro Luiz Fux alertou que o “quadro patológico de descumprimento de decisões judiciais…” é ofensa “patente ao núcleo da separação de Poderes e da coisa julgada”.
O mesmo recado foi repetido nas sessões plenárias de 29 e 30 de junho, quando o STF, sob a relatoria da ministra Rosa Weber, relembrou que valores objeto de precatórios não pertencem ao Estado, derrubando lei que autorizaria a conversão dos valores depositados em favor do Tesouro Nacional se em dois anos não houvesse seu resgate pelo credor. O argumento de que tal serviria para custear despesas primárias não funcionou. O Suprema Corte, mais uma vez, reconheceu que “os créditos liquidados em desfavor da Fazenda Pública representam, no mais das vezes, lesões a direitos perpetrados pela Administração há muito tempo, mesmo décadas”.
O calote jamais foi necessário. Nunca houve falta de dinheiro para os precatórios federais. Trata-se de mais uma fake news a atingir não apenas os credores do Estado, como a autoridade do Judiciário, “sem (a qual) não há democracia”, reforçando recente citação do ministro Alexandre de Moraes.
As referidas emendas do calote são objeto de ações ajuizadas perante o STF por legitimados que representam todos os extratos da sociedade, de partidos políticos à OAB e outras entidades de advogados, e até mesmo da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). A sociedade confia que a Corte restaurará a autoridade da Constituição. Afinal, como se extrai de campanha em seu próprio Twitter: ‘Uma mentira contada mil vezes não vira verdade” (Twitter, 07.2021)
* Renato de Mello Jorge Silveira é advogado, presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e professor titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)