Existe uma interpretação clássica que sustenta que corrupção se previne com excesso de controles. De acordo com essa linha de pensamento, quanto mais procedimentos, etapas, documentos ou requisitos protocolares, menor a probabilidade da materialização do risco de suborno. Ledo engano. Como que uma variante de vírus, desenvolveu-se ao longo do tempo uma nova tipologia de corrupção que se alimenta exatamente da burocracia: a corrupção sindrômica.
O paradoxo não poderia ser mais irônico: o excesso de controles não só não mitiga, como faz aumentar casos de suborno, fraudes e outras condutas ilícitas. Isso acontece porque, na corrupção sindrômica, criam-se relações promíscuas oriundas da burocracia estatal que, de tão complexa, aprendeu a criar dificuldades para vender facilidades, gerando um ciclo vicioso.
Desde a concepção da administração pública burocrática, nos idos do século XX, já se compreendia a importância de combater suborno, patrimonialismo, nepotismo e outras fraudes por meio da profissionalização de uma burocracia hierarquizada, com normas rígidas, rotina inflexível e focada no formalismo de procedimentos pré-determinados. Assim, zelando-se pela separação do público e do privado, criou-se uma supervalorização dos controles.
Não é grande novidade que a burocracia – nascida como sinônimo positivo de profissionalismo – viria a se transformar no equivalente pejorativo de ineficiência. Procedimentos, controles e critérios não foram atualizados ao longo do tempo e geraram um emaranhado de caminhos tortuosos que passaram a dificultar o acesso a serviços públicos pelo cidadão-cliente. E a burrocracia, então, gerou outro efeito: o aumento da corrupção, na medida em que fica mais fácil pagar por fora para destravar ou desengavetar solicitações a cumprir o processo convencional.
Esse ciclo vicioso só será quebrado com desburocratização, simplificação ou mesmo a redução do Estado, capazes de otimizar os processos administrativos governamentais; e por meio de compliance, que redefina regras de conduta nos setores público e privado, provendo controles mais modernos que sejam assertivos e equilibrados.
Essa nova roupagem de controle deve ser assertiva, isto é, adequada, suficiente e proporcional para coibir com eficiência as fraudes no momento e na ocasião propícia, de modo que os efeitos colaterais não sejam piores que a doença.
Um ótimo exemplo é a antiga lei de licitações. Sinônimo unânime de burocracia desproporcional e ineficiente, seus controles não foram capazes de mitigar assertivamente a corrupção. É consenso que a lei estruturava um processo de contratação disfuncional, a ponto de demorar, em média, quase um ano para ser concluído. Ao mesmo tempo, especialistas alertavam que o risco maior estava na gestão dos contratos, não na fase concorrencial, errando assim no remédio e na dose.
Os novos controles também precisam ser equilibrados, e não baseados em um punitivismo inconseqüente, que trata igualmente o gestor que erra de boa-fé daquele que comete dolosamente ato ilícito. Se os controles continuarem como estão, dois efeitos serão notáveis. O primeiro é o afastamento de bons profissionais, que evitarão ingressar no serviço público por medo de ações judiciais. O segundo é o chamado apagão das canetas, que aterroriza e amedronta servidores públicos, impedindo a tomada de decisões e paralisando a dinamicidade do Estado. Não raras vezes vi servidores que, por medo, deixaram de tomar decisões importantes, saindo da inércia apenas por comando do Ministério Público ou do judiciário.
A mesma lógica também vale para os próprios dos programas de compliance no setor privado; é preciso que os controles sejam a solução, não o problema. Assim, não é razoável a implementação de controles que, além de não mitigarem com eficiência a corrupção, atravancam os processos de tomada de decisões corporativas.
Por fim, sempre vale lembrar que não bastam apenas controles. O tripé necessário deve ser o de prevenir, detectar e punir. Em outras palavras, não existe bala de prata no combate à corrupção. As soluções são muitas e concomitantes: transparência, controle social, instituições fortes, imprensa livre, democracia pujante e cultura de integridade, aliada a uma burocracia estatal leve e simplificada.
Daniel Lança é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e foi um dos especialistas a escrever as Novas Medidas contra a Corrupção (FGV/Transparência Internacional)