Juristas e historiadores apontam que o governo federal não respeitou o devido processo legal ao anular anistias concedidas a ex-cabos da Força Aérea Brasileira (FAB) por perseguição política na época da ditadura militar (1964-1985). Como a coluna informou, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, assinou diversas portarias anulando 295 anistias concedidas. As nulidades foram publicadas no Diário Oficial da União (DOU) da segunda-feira, 8.
Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha julgado constitucional, em outubro de 2019, a possibilidade de revogação das anistias concedidas a cabos da Aeronáutica, os ministros definiram que deveria ser garantido ao anistiado a defesa administrativa e a não devolução das verbas recebidas de boa-fé.
Segundo especialistas ouvidos pela coluna, essa defesa não foi respeitada. Para Marcelo Torreão, advogado dos ex-militares, o governo fez apenas uma determinação genérica e repetida para todos os cabos anistiados apresentarem defesa, em sentido amplo, sem possibilidade de produção de provas, num procedimento de “linha de montagem”. Para o jurista, essa postura era esperada do atual governo.
“O que houve foi uma nota bem genérica, igual para todos os anistiados cabos, dizendo que já que o Supremo disse que o governo poderia revisar as anistias, fica aberto o prazo para defesa. Não se diz defesa de que. Não se abre a possibilidade de produção de provas, então é realmente um procedimento de linha de montagem e de certa forma era esperado nesse atual governo para passar por cima de qualquer requisito da lei, passar por cima do devido processo legal para sair cortando essas anistias desse grupo”, afirma Torreão.
De acordo com o advogado, a decisão do governo abre espaço para mais judicialização. “No final das contas, o resultado será que cerca de dois mil anistiados ou viúvas, na faixa dos 70, 80 anos de idade, terão cortados os benefício concedidos há quase duas décadas pela Administração. Mas como o governo não obedeceu o devido processo legal, isso acarretará mais judicialização, ou seja, essas mesmas pessoas buscarão o Poder Judiciário para restabelecer o benefício”, explica Marcelo Torreão.
Para a professora Eneá Stutz, coordenadora do grupo de pesquisa sobre Justiça de Transição da Universidade de Brasília, o posicionamento da atual Comissão de Anistia, formada após o início do governo de Jair Bolsonaro, foi determinante para as anulações. “Essas revisões necessariamente aconteceriam por causa do entendimento dessa nova Comissão de Anistia, que deixou de ser uma comissão de estado e que acompanha o entendimento do governo”, afirma a professora.
Segundo ela, a Comissão e a ministra Damares Alves não acreditam que houve estado de exceção no Brasil. Por isso, não acham que a portaria questionada tenha sido uma arbitrariedade. “Desde o primeiro momento, a [ministra] Damares, assim como aqueles que ela nomeou para a Comissão de Anistia, entendem que não houve um estado de exceção no Brasil. Entendem que não houve ditadura, logo não teve nenhum ato de exceção”, explica.
A deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) classificou a decisão do governo como uma “vergonha” e afirmou que vai apresentar um Projeto de Decreto Legislativo que, se aprovado, suspende a portaria do Ministério. Para a deputada, a anulação é a retomada de uma perseguição política.
“A anistia de integrantes dos baixos escalões que ficaram com Goulart ou foram contra 64 sempre recebeu resistência do comando das Forças Armadas, mas foi importantíssima para tentar fazer justiça. Essas pessoas viviam como párias, desvalorizados e perseguidos. O símbolo disso atende os setores mais reacionários e indica que posições contrárias ao comando não serão toleradas”, afirma a deputada.
Para o advogado Victor Mendonça Neiva, ex-representante dos anistiados na Comissão da Anistia, a anulação dos benefícios é absurda. “Considero um absurdo, mas contou com a legitimação do STF. É um ato de transição reversa, ou esgarçamento institucional”.
Entenda a decisão do STF
Em outubro de 2019, o STF decidiu, por 6 votos a 5, que seria possível revogar as anistias concedidas a ex-cabos da Força Aérea Brasileira (FAB) atingidos pela Portaria 1104, de 1964, que mudou a regra em vigor antes do início do regime militar para determinar a dispensa dos cabos contratados (não concursados) por mais de oito anos. A questão teve repercussão geral e o voto de desempate foi do ministro Luiz Fux, que acompanhou o relator do caso, ministro Dias Toffoli.
A corte também definiu, na ocasião, que o prazo decadencial de 5 anos não é obstáculo para que a administração pública reveja seus atos, ou seja, a União poderia revisar processos que tinham mais de 5 anos. Para a maioria dos ministros, a portaria 1104 não constitui, por si só, um ato de exceção e deveria haver a comprovação, caso a caso, da existência de motivação política e ideológica para a exclusão das Forças Armadas, único fator que possibilita a concessão da anistia.