A primeira reunião do gabinete de crise para a prevenção de comunidades indígenas contra a Covid-19, medida imposta ao governo pelo Supremo Tribunal Federal (STF), foi um fiasco e desagradou muito os representantes de etnias presentes, assim como o Ministério Público Federal (MPF). O gabinete terá que encontrar soluções para a proteção de índios isolados e de recente contato, os mais frágeis diante da violência do novo coronavírus.
Segundo relatos obtidos pela coluna entre participantes, o tema não foi abordado corretamente e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI), Augusto Heleno, responsável por coordenar os trabalhos, afirmou que a questão indígena deveria ter sido resolvida há 50 anos no Brasil e que os povos encontrados fora de terras demarcadas serão tratados como produtores rurais e orientados a buscar o atendimento do SUS, o Sistema Único de Saúde, como qualquer cidadão.
As duas declarações levaram indígenas de etnias como Marubo, Kaxuyana, Guajajara e Terena, presentes no encontro, a criticar fortemente o ministro do GSI. Na videoconferência, Augusto Heleno ainda teria reclamado dos atores responsáveis por obrigar o governo a criar o gabinete de crise, afirmando que a reunião só foi realizada por conta de ONGs e partidos políticos opositores.
O gabinete de crise foi criado após decisão do Luís Roberto Barroso, que atendeu à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, ingressada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Abip) e seis partidos (PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT e PDT). A ideia é que a sala virtual possa se reunir inúmeras vezes nos próximos meses.
A declaração do ministro e de outros integrantes que citaram viés ideológico foi rebatida pela indígena Sonia Guajajara. Ela, que é coordenadora da Apib, afirmou que os povos originários “não estavam no gabinete de crise por partido A ou B”. “Nunca fomos prioridade de qualquer governo”, disse a indígena, reforçando também que a Apib é a organização legítima para entrar com a ação.
Sonia Guajajara ainda reclamou que o encontro não tratou da proteção dos indígenas isolados e de recente contato, como determina a decisão do ministro Barroso. Uma das medidas esperadas é a criação de barreiras sanitárias em 31 territórios espalhados pelo país onde há registro da presença desses povos originários que preferem o isolamento da sociedade majoritária brasileira e não têm memória imunológica para enfrentar o vírus.
“Enquanto o ministro Barroso estava na reunião, eles estavam todos se comportando decentemente. Na hora que o Barroso saiu da sala, os integrantes do governo mudaram o tom e foram bastante grosseiros em alguns momentos”, afirmou Sonia Guajajara à coluna.
A videoconferência foi atrapalhada por inúmeros problemas técnicos, com muita dificuldade na captação dos áudios das mais de 60 pessoas presentes, além da queda recorrente da conexão. Ainda segundo relatos obtidos pela coluna, a procuradora Eliana Peres Torelly, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, afirmou, diante desse quadro, que a reunião “não estava atingindo seus objetivos”.
A opinião foi compartilhada pelo representante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), também presente no encontro online. Um exemplo das dificuldades técnicas da reunião aconteceu quando Ângela Kaxuyana não conseguiu fazer uso da palavra. Havia a presença também de funcionários públicos de Distritos Sanitários Especiais Indígenas onde nem há índios isolados, o que ampliou a desorganização da sala do gabinete de crise.
Outro momento conflituoso da reunião foi quando Robson Santos da Silva, da Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, criticou o uso da palavra genocídio por lideranças indígenas para retratar a gravidade da pandemia entre os povos originários. Nesta semana, o ministro Gilmar Mendes, do STF, afirmou que o Brasil pode estar cometendo um genocídio contra essas populações. Várias lideranças indígenas e especialistas no tema, como o fotógrafo Sebastião Salgado, concordam. Na videoconferência, Robson foi acusado de tentar gerar rusgas entre as etnias.