O mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública trouxe à luz dados atualizados sobre uma das principais manchas na democracia brasileira: as mortes incessantes de pessoas – principalmente negras e pobres – nas mãos de agentes do Estado. Segundo o Anuário de 2024, 6.393 pessoas foram mortas por agentes policiais, das quais 83% eram negras e quase 72% eram jovens de 12 a 29 anos. Entre os estados brasileiros, o que mais se destaca é o Estado da Bahia, onde a polícia foi responsável pelas mortes de 1.699 pessoas.
Esses números em si são aterradores e indignantes, e deveriam chocar a consciência de qualquer sociedade que considera-se democrática. Mas o impacto da violência de Estado é ainda maior e mais amplo do que as estatísticas indicam. Por trás de cada uma das 6.393 vidas ceifadas pela violência de Estado, há uma família que sofre as sequelas decorrentes dessa violência, a qual tem como resultado o deterioro do bem-estar e da saúde mental e física dos familiares da vítima. Como disse uma mãe de um jovem morto pela Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro ao relatar as crises de ansiedade, a depressão, e as tentativas de suicídio do filho sobrevivente após a morte do irmão, para as famílias das vítimas, a violência de Estado “acaba com a nossa saúde, acaba com a nossa vida. Então é o que fica. O Estado mata e continua matando aos pouquinhos.”
Essa declaração foi publicada no relatório final da nossa pesquisa, “Vozes da Dor, da Luta, e da Resistência das Mulheres/Mães de Vítimas da Violência de Estado no Brasil”, fruto de uma parceria entre o Movimento Independente Mães de Maio, a Universidade Federal de São Paulo e a Universidade de Harvard. Essa pesquisa foi desenvolvida por meio de metodologias participativas e de construção conjunta, baseadas na educação popular, com o objetivo de priorizar as vozes das pessoas que vivem a violência de Estado cotidianamente.
Os resultados da nossa pesquisa demonstram que a violência estatal não é “apenas” uma morte injusta e não é praticada apenas pela polícia. As narrativas das mães de vítimas ouvidas na pesquisa revelam o que chamamos o “modus operandi” da violência de Estado, uma sequência de descaso, negligência e humilhação praticada por um conjunto de instituições estatais. Com poucas excepções, as vinte mães de vítimas em quatro estados – Bahia, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo – compartilharam relatos semelhantes sobre a atuação das instituições da segurança pública e do sistema de justiça. Em quase todos os casos, as mães relataram experiências de viver por um processo inquisitorial na delegacia, no IML e no Ministério Público; resultando na criminalização das vítimas e das famílias; investigações oficiais paralisadas e a falta de informação e transparência, as quais obrigaram as famílias a realizar suas próprias investigações dos casos em busca de evidências, testemunhas e até os restos mortais dos filhos; e, finalmente, o arquivamento dos casos. A pesquisa também revelou o ciclo de impunidade que persiste nos quatro estados em que a pesquisa foi realizada: mães que descobriram que o policial que matou seu filho já tinha praticado outro homicídio que teve como desdobramento o arquivamento do caso ou absolvição do policial. Para as famílias das vítimas, essa sequência de descaso, humilhação e impunidade constitui uma tortura institucional praticada pelo Estado.
O relatório da pesquisa também demonstra que o modus operandi da violência de Estado às vezes inclui ameaças e outras condutas intimidatórias contra as famílias e as comunidades das vítimas. Várias mães denunciaram abordagens aos filhos sobreviventes ou invasões das casas dos filhos ou outros parentes após a morte da vítima. A mãe de uma das vítimas da chacina da Gamboa, na Bahia, denunciou ameaças da polícia contra protestos na comunidade: “três dias depois eles desceram aqui na Gamboa, deram tiro para cima e falaram assim: ‘Vai fazer o seu protesto e se a gente tiver que matar a gente mata mesmo’.” As ameaças que devem enfrentar as famílias das vítimas podem alcançar um patamar devastador. No transcurso da nossa pesquisa, Lizangela Rodrigues da Silva Nascimento, a irmã de uma das mães entrevistadas e a principal testemunha da morte do menino Mizael Fernandes nas mãos da polícia do Ceará, foi vítima de desaparecimento forçado no dia 7 de janeiro de 2023. A família denuncia que o caso não está sendo investigado.
Perante esse panorama de descaso, negligência e impunidade todas as mães ouvidas pela nossa pesquisa compartilharam dolorosos relatos de adoecimento físico e psicológico decorrente da resposta institucional à morte do filho nas mãos de agentes do Estado. São inúmeras as sequelas deixadas pela violência de Estado, as quais se constituem em doenças que acometem o corpo dessas mulheres e familiares. Dentre as citadas nas narrativas estão: hipertireoidismo, transtorno bipolar, ansiedade, depressão, insônia, diabetes, AVC, pressão alta, síndrome do pânico, úlcera nervosa, queda de cabelos, problema cardíaco, tireoide, osteoporose, câncer, mioma, cisto no útero, enfisema pulmonar, arritmia cardíaca e derrame. Um dos casos mais graves de adoecimento entre as participantes da pesquisa foi o da irmã de uma vítima dos Crimes de Maio de 2006; no transcurso da pesquisa ela sofreu um deterioro na saúde e até hoje está internada lutando contra câncer.
Aliás, a principal motivação da pesquisa foi a morte prematura de várias mães de vítimas dos Crimes de Maio, entre elas a co-fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, Vera Lúcia Gonzaga, quem morreu por suicídio em Maio de 2018. As narrativas coletadas na pesquisa demonstram que o adoecimento também atinge a saúde mental e apontam o processo pelo qual o Estado “continua matando aos pouquinhos,” como disse a mãe citada anteriormente. As narrativas também revelaram que várias mães ou filhos sobreviventes tentaram suicídio após a perda do filho, em alguns casos com tentativas reiteradas. A pesquisa também demonstra outros caminhos pela qual a violência de Estado transforma as vidas dos familiares de vítimas e ameaça o bem-estar de famílias que já estão lidando com luto e sofrimento. Várias mães de vítimas contaram sobre a impossibilidade de trabalhar ou participar da vida familiar e comunitária devido a transtornos de saúde, crises de pânico, e outras sequelas. Nossa pesquisa aponta que, perante esse quadro devastador, são as próprias mães de vítimas que assumem o papel de acolher e apoiar outras mães, não só na luta pela justiça mas também para preservar a saúde e as vidas dessas mulheres. Em todos os estados, várias mães relataram que obtiveram acesso à orientação jurídica e acompanhamento psicológico através dos próprios movimentos de mães, e não através do Estado, que deveria cumprir esse papel. O trabalho de acolhimento pelos movimentos de mães de vítimas se tornou mais urgente ainda durante a pandemia da COVID-19. No contexto da pandemia global, as pesquisadoras e mães de referência nos quatro estados lidavam ao mesmo tempo com a devastação sócio-econômica gerada pela pandemia, respondendo às necessidades das suas respectivas comunidades arrecadando recursos e providenciando cestas básicas e kits de higiene às mães e familiares de vítimas da violência de Estado.
No entanto, o Estado tem que ser responsabilizado pelas consequências da violência exercida pelos seus agentes. Como indica a narrativa de uma mãe de vítima de São Paulo, há uma linha direta entre a atuação (e omissão) do Estado, e os transtornos para a saúde física e mental das mães e das famílias: “A mãe é morta todos os dias porque não tem respostas do Estado. São 7 anos; 7 anos que espero alguma audiência e até hoje nenhuma audiência teve. Tem mães que nunca tiveram audiência e quando a mãe fica sabendo que foi pra gaveta, é arquivado o caso. É onde aquela mãe morre outra vez. Aquela mãe já estava morta, ali, na hora do arquivamento pode enterrar aquela mãe.”
Nossa pesquisa demonstra a necessidade urgente de políticas públicas de reparação integral para atender as mães e as famílias de vítimas e pôr fim à impunidade e exercer um verdadeiro controle externo das polícias. Os movimentos de mães no Brasil têm liderado a construção de políticas públicas nesse sentido, através do Projeto de Lei 2999/2022 radicado no Congresso. O PL contempla mecanismos para “incidir nos impactos da violência policial em relação às mães e familiares de vítimas, garantindo-lhes suporte institucional integral e multidisciplinar.” A legislação também pretende “reparar, coibir e prevenir esta forma de violência contra crianças, adolescentes e jovens”. Os resultados da nossa pesquisa contribuem ao apresentar evidências científicas para apoiar as demandas que os movimentos de mães vêm fazendo durante muitos anos. Nosso processo metodológico também serve como modelo para pensar o desenho e a implementação dessas políticas públicas de reparação integral e prevenção da violência de Estado. As mães e familiares não precisam de mais intervenções que seguem o modelo hierárquico tradicional, de cima para baixo. Qualquer política pública de reparação deverá ser a partir das pautas e iniciativas das próprias mães, com o protagonismo de quem já sofreu a violência de Estado.
* Aline Lúcia de Rocco Gomes é especializada em Direitos Humanos e Lutas Sociais pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF Unifesp)
* Débora Maria da Silva é mãe de referência do Movimento Independente Mães de Maio, de São Paulo, que atua desde o ano de 2006 em ações de denúncia, lutando pela responsabilização do Estado pela morte de seu filho Edson Rogério, acolhendo as demandas de outras mães que perderam seus filhos e filhas para a violência de Estado;
* Yanilda González é professora assistente de Políticas Públicas na Harvard Kennedy School;
* Raiane Assumpção é cientista social, pesquisadora e professora universitária brasileira. É a atual reitora[1] da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp);
* Edna Carla Souza Cavalcante é mãe de referência do Movimento Mães da Periferia em Fortaleza/ CE. Edna teve seu filho Álef Souza Cavalcante assassinado por agentes da segurança pública do Estado do Ceará em novembro do ano de 2015 em uma chacina conhecida como “Chacina do Curió”. Desde então vem desenvolvendo ações de acolhimento, denúncia e luta por justiça pelo seu filho e de outras dez mães que tiveram seus filhos vitimados na ação da polícia militar;
* Nivia Raposo é mãe de referência do Movimento de Mães da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro. Desenvolve ações de denúncia desde que teve seu filho Rodrigo Tavares assassinado pela milícia69 em outubro do ano de 2015;
* Rute Fiuza é mãe de referência do Movimento Mães do Nordeste na Bahia. Atua na cidade de Salvador desde que seu filho Davi Fiúza foi considerado desaparecido após uma intervenção realizada por agentes da polícia militar da Bahia. Desde então busca por justiça e responsabilização do Estado pelo desaparecimento de seu filho;
* Valéria de Oliveira é mestra em assistente Social, pesquisadora pelo CAAF Unifesp e especialista em Educação e em Direitos Humanos;