“Prestes a completar 80 anos, a Carta das Nações Unidas nunca passou por uma reforma abrangente. Apenas quatro emendas foram aprovadas, todas elas entre 1965 e 1973. […] Inexiste equilíbrio de gênero no exercício das mais altas funções. O cargo de Secretário-Geral jamais foi ocupado por uma mulher”
Há uma semana, Lula era efusivamente aplaudido na 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, com a declaração acima. O momento era único, raro.
Abrindo o prestigioso encontro de líderes globais, o presidente apontou corretamente que a tão sonhada igualdade de gênero ainda está longe de ser alcançada – até mesmo em organizações que defendem isso há décadas, como a ONU.
Para se ter uma ideia, esse foi o momento em que o esquerdista mais foi aplaudido por seus colegas presidentes. Contrasta, contudo, com uma triste realidade no judiciário brasileiro – e que Lula não tem ajudado a mudar no seu próprio país.
Após diminuir o número de mulheres no Supremo Tribunal Federal em seu terceiro mandato – escolhendo dois homens brancos para a corte – o presidente terá uma nova chance de ser coerente com o discurso com a lista tríplice que está sendo formada para o Superior Tribunal de Justiça (a escolha acontecerá neste mês de outubro).
Lula não pode defender uma mulher para secretária-geral da ONU e não fazer o mesmo no Brasil.
Acontece que, no nosso país, a questão é ainda mais complexa porque mistura também o racismo estrutural que tem impedido que mulheres negras cheguem às cortes superiores. Nunca houve uma mulher negra no STF ou no STJ.
Aliás, no Poder Judiciário como um todo elas chegam apenas a 6%, embora representem o maior segmento social do país (28%). Como já mostrou a coluna, ao longo dos seus 35 anos de existência, dos 103 ministros e ministras que passaram pelo tribunal, apenas nove foram mulheres (brancas) e duas, pessoas negras (homens).
Passou da hora de isso mudar no Brasil.
Recentemente, Lula reclamou na posse de um ministro do STJ que o evento tinha a cara de uma “supremacia branca, nada a ver com a realidade brasileira”. No mesmo dia, o presidente da corte, Herman Benjamin, afirmou que há um “número reduzido de mulheres, pessoas negras e de outras minorias na cúpula do judiciário – inclusive no STJ”.
Ora, a situação está justamente na mão dos dois, Lula e Herman.
O STJ precisa fazer a sua parte ao formar a lista, sem inventar medidas inconstitucionais (como também já mostrou este espaço) para aumentar a vergonha do tribunal ou a desigualdade na fotografia de todos ministros da corte.
Na formação da nova lista com três nomes para o presidente Lula, é necessário que se busque nomes de mulheres negras, rompendo com o pacto da branquitude. Para tanto, é necessário abandonar o “acordo de cavalheiros” que, tradicionalmente, tem exigido condições inconstitucionais para a composição da lista tríplice de membros do Ministério Público. Se o STJ, atualmente presidido pelo ministro Herman Benjamin, efetivamente romper com esse pacto que reproduz racismo e sexismo institucionais, a responsabilidade será transferida para Lula.
Assim, será a vez do presidente – com a lista tríplice na mesa presidencial no Palácio do Planalto – encarar os seus próprios discursos como confissão de fé. Aquela que não é negociável, nem mesmo debaixo de pressões políticas de lado a lado e que parecem ditar as regras da nossa frágil democracia em Brasília, a partir de acordos momentâneos e descomprometidos com a nossa Constituição. É hora de pensar em legado.