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Marcos Emílio Gomes A coluna trata de desigualdade, com destaque para casos em que as prioridades na defesa dos mais ricos e mais fortes acabam abrigadas na legislação, na prática dos tribunais e nas tradições culturais
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Fragmentos de um discurso injurioso

As redes sociais são um criadouro de ideias "da família das moscas teimosas" – do tipo que, "por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam"

Por Marcos Emílio Gomes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 22 jun 2020, 18h38 - Publicado em 22 jun 2020, 16h22
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  • Saber como e até que ponto é possível pensar diferente equivale a abrir uma fresta no caminho para a compreensão dos outros, da contemporaneidade e da forma como as ideias se acomodam na percepção coletiva da realidade. O tema é um dos pilares da filosofia moderna, mas o exercício proposto aqui é bem mais raso.

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    Pretende apenas destrinchar uma composição medíocre, um discurso injurioso que, como muitos outros, dissemina-se em redes sociais e ganha a condição de reflexão justificadora da insensibilidade, da acomodação, do preconceito e de privilégios que marcam a profunda divisão social no país, tornada ainda mais aguda pela pandemia e pela polarização política.

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    O texto a seguir espalha-se rapidamente nos grupos digitais:

    “Agradeço a todos os meus amigos e conhecidos que ainda se atrevem a se relacionar comigo, apesar de todas as minhas deficiências.
    “Eu nasci branco, o que me faz racista.
    “Em uma família trabalhadora, então eu sou burguês
    “Não voto para esquerda, o que me torna fascista.
    “Sou heterossexual, o que me torna um homofóbico.
    “Valorizo ​​minha identidade e minha cultura, o que me torna um xenófobo.
    “Eu gostaria de viver em segurança e ver criminosos na prisão, o que me torna um torturador.
    “Quero que respeitem minha maneira de pensar e minhas crenças e não me façam pensar que o anormal é normalmente relativo, o que me transforma em um repressor.
    “Penso que os subsídios acabam com o esforço de trabalhar e minam a dignidade das pessoas, por isso sou insensível.
    “Acredito que cada um deve ser recompensado de acordo com sua produtividade, mérito e capacidade, o que me torna um egoísta antissocial.
    “Eu fui educado com valores e princípios, o que me torna um oponente do bem-estar social.
    “Esta é uma pequena e breve revisão da minha má reputação.
    “Mas, pelo menos, tenho certeza de que somos vários: o amigo que me enviou a mensagem, eu e, se você também tem essa má reputação, a reenvia [sic].
    “Agradeço a todos os meus amigos e conhecidos que ainda se atrevem a se relacionar comigo, apesar de todas as minhas falhas.”

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    Não é difícil perceber que, nesse tom assim lembrando O Pequeno Príncipe, o que a suposta reflexão profunda sobre a condição nacional está buscando é o estabelecimento de pretextos para o comportamento que anima pais de família a sair à rua vestidos de verde-amarelo para defender um presidente corrosivo e corroído.

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    Até onde se pode rastrear, trata-se de mais uma iniciativa da usina de criações digitais mantida pelos esquadrões bolsonaristas, na busca de uma alternativa motivadora que substitua, ou complemente, o sistema propagador de notícias falsas, iluminado demais no momento para operar a toda força.

    O arrazoado busca, com a mesma qualidade literária, o efeito a que se assiste, sobre adolescentes e permanentes adolescentes, no caso da simplória poesia militante de esquerda. Mas, como esta tem pelo menos motivação transformadora, e a peroração acima pretende apenas conservar ou aperfeiçoar arranjos sociais injustos, é interessante decompor seu conteúdo, como num antiga interpretação escolar de texto.

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    Frase por frase, o subtexto de cada período fornece argumentos para a inação, a disseminação do preconceito e, de certo modo, a conformidade com a propagação do ódio contra tudo o que seja diferente ou represente uma ameaça a privilégios historicamente estabelecidos:

    “Agradeço a todos os meus amigos e conhecidos que ainda se atrevem a se relacionar comigo, apesar de todas as minhas deficiências.”
    – Sou apenas um brasileiro comum.
    O neon aceso da ironia anuncia um show de autoindulgência.

    “Eu nasci branco, o que me faz racista.”
    – Tenho, portanto, de conformar-me com esse mundo em que ocupo, naturalmente, uma posição de vantagem sobre os que nasceram de outra cor.
    Se o racismo explícito individual é um crime hediondo, esse que prega a isenção e se exime de responsabilidade é justamente o que faz prosperar a discriminação em nível coletivo.

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    “(Nasci) Em uma família trabalhadora, então eu sou burguês”
    – Comecei, sem nenhuma culpa, a corrida ascendente muitos metros à frente dos que vêm de famílias desestruturadas e devo manter essa vantagem porque não há espaço para todos nos patamares superiores.
    Argumento de proporção semelhante ao que trata do racismo, a frase serve para eximir o sujeito de responsabilidade sobre questões sociais.

    “Não voto na esquerda, o que me torna fascista.”
    – Se não aceitam o que eu penso, são todos comunistas.
    O mundo, nessa perspectiva, não tem nuances e se divide entre bons e maus. Cabe lembrar que o autoritarismo de esquerda parte do mesmo princípio.

    “Sou heterossexual, o que me torna um homofóbico.”
    – Apenas estou de acordo com o que manda a natureza.
    Argumento que antecede a alguma piada que discrimina gênero, a afirmação requer análise – do tipo oferecida por psicanalistas. Só a psicologia é capaz de explicar por que um heterossexual sente-se apontado como homofóbico.

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    “Valorizo ​​minha identidade e minha cultura, o que me torna um xenófobo.”
    – O Brasil é o país mais rico do mundo, e também onde mais se rouba.
    Naturalmente, o caso é de confusão quanto a significados. Não são xenófobos os que valorizam identidade e cultura. Também não são xenófobos os que se deslumbram com férias em Miami e quinquilharias importadas. Talvez o termo mais adequado seja chauvinista, referente a um patriotismo vazio de ocasião.

    “Gostaria de viver em segurança e ver criminosos na prisão, o que me torna um torturador.”
    – Tem gente que já nasce ruim.
    Essa conversa vai longe. Segue geralmente argumentando que “se a polícia matasse mais vagabundos, os presídios não seriam escolas para a formação de bandidos” e chega ao salvo conduto para os agentes da violência do Estado.

    “Quero que respeitem minha maneira de pensar e minhas crenças e não me façam pensar que o anormal é normalmente relativo, o que me transforma em um repressor.”
    – São, então, anormais, os que não pensam como eu.
    Trata-se de um atalho para a intolerância religiosa, política, econômica e de qualquer outra natureza.

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    “Penso que os subsídios acabam com o esforço de trabalhar e minam a dignidade das pessoas, por isso sou insensível.”
    – Os outros são uns aproveitadores.
    Claro que a máxima não vale para subsídios que favoreçam os próprios negócios. Aplica-se apenas a programas de renda mínima, reivindicações salariais e direitos trabalhistas em geral. É muito comum ser pronunciada por quem prega a caridade e a doação, mas tem horror à institucionalização do combate à desigualdade.

    “Acredito que cada um deve ser recompensado de acordo com sua produtividade, mérito e capacidade, o que me torna um egoísta antissocial.”
    – Eu me esforcei e não devo nada a ninguém.
    Estranhamente, a meritocracia só é em geral defendida mais vigosaramente depois de se passar pelas melhores escolas particulares e universidades, não raramente públicas. Qualquer proposta que busque igualar oportunidades é extremista.

    “Fui educado com valores e princípios, o que me torna um oponente do bem-estar social.”
    – Que culpa tenho de ter nascido numa família estável?
    A estabilidade é bem mais fácil com renda adequada, acesso a educação e plano de saúde.

    “Esta é uma pequena e breve revisão da minha má reputação.”
    – O mundo é dos mais fortes.
    Ou dos mais espertos ou ainda dos que tiveram a sorte de encontrar oportunidades, entre milhares de fracassados, e imaginam ter vencido a competição pela sobrevivência.

    “Mas, pelo menos, tenho certeza de que somos vários: o amigo que me enviou a mensagem, eu e, se você também tem essa má reputação, a reenvia [sic].”
    – Estamos todos empenhados na defesa de nossos privilégios.
    Ao longo da história, sociedades que se basearam em princípios semelhantes e em argumentos de tamanha hipocrisia, terminaram sugerindo que os miseráveis comessem brioches, escravizaram e perseguiram os diferentes, produziram pogrons e holocaustos.

    “Há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam”.
    Machado de Assis, “Uns Braços”.

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