A Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou ao Supremo Tribunal Federal (STF) defendendo que seja incluída em um inquérito em tramitação na Corte a apuração da Polícia Federal a respeito de uma live do presidente Jair Bolsonaro (PL). Na referida transmissão, ocorrida em 29 julho, ele disseminou teorias conspiratórias sem comprovação sobre fraudes nas urnas eletrônicas e na apuração de votos das eleições de 2014.
Dessa forma, o ato da PGR endossa o pedido feito pela Polícia Federal em um relatório enviado ao ministro Alexandre de Moraes com as conclusões sobre a apuração a respeito da live presidencial, documento revelado por VEJA na quinta-feira, 16.
A subprocuradora-geral da República Lindôra Maria Araújo escreveu, também a Moraes, que “há indícios, portanto, de que possa ter havido a divulgação indevida de informações falsas e/ou de baixa confiabilidade, bem como que alguns dos envolvidos na viabilização da live ocorrida no dia 29.7.2021 tinham ciência da imprecisão das informações veiculadas”. “A suposta divulgação de informação com baixa confiabilidade ocorrida no episódio apurado aparentemente foi seguida dos mesmos mecanismos de propagação de fake news nas redes sociais utilizados pelos grupos investigados no INQ 4.874”, diz Lindôra.
Ainda em consonância com os pedidos da PF, a PGR solicitou que cópias da investigação sejam enviadas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde corre um inquérito administrativo a respeito de supostas fraudes nas urnas eletrônicas; à Controladoria-Geral da União (CGU) “para providências em relação à conduta dos agentes públicos”; e ao Ministério Público Federal no Distrito Federal, para “avaliação quanto à possível repercussão do evento nos atos de improbidade”.
“Atuação direta e relevante” de Bolsonaro
No relatório revelado por VEJA, a PF afirma que Jair Bolsonaro teve atuação “direta e relevante” em um processo de desinformação a respeito do sistema eleitoral brasileiro.
Assinado pela delegada da PF Denisse Dias Rosas Ribeiro, o documento foi produzido após uma investigação da PF sobre a live transmitida por Bolsonaro, em que ele anunciou que faria revelações sobre fraudes nas urnas eletrônicas. O presidente, afinal, mostrou apenas dados sem qualquer comprovação. Ele esteve acompanhado do ministro da Justiça, Anderson Torres, que também participou da transmissão e leu trechos de relatórios que supostamente apontariam suspeitas.
“Este inquérito permitiu identificar a atuação direta e relevante do Exmo. Sr. Presidente da República JAIR MESSIAS BOLSONARO na promoção da ação de desinformação, aderindo a um padrão de atuação já empregado por integrantes de governos de outros países”, diz o documento.
A delegada Denisse sustentou também que a live poderia, em tese, ser abrangida em delitos previstos pela lei que revogou a Lei de Segurança Nacional, texto sancionado em agosto de 2021. Os artigos seriam os referentes a “fazer propaganda, em público, de processo ilegal para subversão da ordem política ou social” e de “incitar a subversão da ordem política ou social”.
O relatório afirma que interessaria mais correlacionar a live “no contexto de atuação de uma suposta organização criminosa que está em operação” e é alvo do inquérito 4874 no STF, ao qual ela pediu que a apuração fosse anexada – posição defendida agora pela PGR.
Reunião no Planalto
A Polícia Federal apurou que houve uma reunião no Palácio do Planalto prévia à live, em 23 de julho, com as presenças de Torres, do diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, e dois peritos federais, Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro. O então ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, participou do início da reunião, que também contou com a presença do coronel Eduardo Gomes, então assessor especial da Casa Civil, que apareceu na live anunciado pelo presidente como “analista de inteligência”. Todos os participantes da reunião, incluindo os ministros e Ramagem, foram ouvidos pela PF.
No encontro no Planalto, foi apresentada uma planilha que reuniria as supostas irregularidades na apuração de votos da eleição de 2014, que opôs Aécio Neves (PSDB) e Dilma Rousseff (PT), com a reeleição da petista. O material embasou declarações da live presidencial levantando suspeitas sobre o pleito.
Ouvidos pela PF, os dois peritos declararam que, com base apenas no que mostrava a planilha, externaram na reunião que não seria possível concluir que houve qualquer fraude nas eleições de 2014. Os dois peritos, Peixinho e Polastri, disseram ter sugerido no encontro que o documento fosse encaminhado à análise de um setor específico pela própria Polícia Federal.
Segundo Peixinho, Ramos afirmou que isso não ocorreria porque o material seria apresentado pelo presidente em uma entrevista coletiva e que a preocupação do ministro era a “de não expor o Presidente da República em uma furada”. Polastri relatou ter havido, no dia seguinte, uma reunião no Ministério da Justiça em que reportaram as mesmas impressões a Márcio Nunes de Oliveira, secretário-executivo da pasta, sem a presença do ministro Anderson Torres.
A tal planilha foi elaborada por um homem chamado Marcelo Abrieli, também foi ouvido pela PF. Abrieli, que disse em depoimento ser formado no Ensino Médio como técnico em eletrônica e empresário do ramo de internet, afirmou aos investigadores que elaborou o material sobre as eleições de 2014 com base em dados que eram fornecidos pelo site de notícias G1, na tentativa de identificar “padrões matemáticos”, com o receio de que o “comunismo tomasse o Brasil”. Questionado na oitiva se possui conhecimento formal em matemática, probabilidade e informática, ele respondeu que não, mas que desde a infância é “autodidata” nessas áreas.
Segundo a PF, os depoimentos colhidos na apuração mostraram que “o processo de preparação e realização da live foi feita de maneira enviesada, isto é, procedeu-se a uma busca consciente por dados que reforçassem um discurso previamente tendente a apontar vulnerabilidades e/ou possíveis fraudes no sistema eleitoral, ignorando deliberadamente a existência de dados que se contrapunham a narrativa desejada, quase todos disponíveis em fontes abertas ou de domínio de órgãos públicos”.
A delegada federal afirma no relatório ao STF que a investigação encontrou “diversas inconsistências” nos depoimentos de Torres, Ramagem, Ramos, e do coronel Gomes e dos peritos, que “convergem em apontar que houve vontade livre e consciente dos envolvidos em promover, apoiar ou subsidiar o processo de construção da narrativa baseada em premissas falsas ou em dados descontextualizados, divulgada na live do dia 29 de julho de 2021”.
“Restou caracterizado pelas narrativas das pessoas envolvidas que a chamada live presidencial foi um evento previamente estruturado com o escopo de defender uma teoria conspiratória que os participantes já sabiam inconsistente, seja pelos alertas lançados pelos peritos criminais federais, seja porque a mesma fonte que forneceu o suporte (pesquisas na internet) também fornece dados que se contrapõem às conclusões alcançadas”, escreveu a delegada Denisse.
Ela ainda afirma que “mesmo com a possibilidade de realização de processos formais de verificação da confiabilidade e veracidade dos dados utilizados, o que poderia ser feito inclusive por órgãos do governo, nada foi checado”.
O relatório diz, em conclusão, que a live presidencial foi feita “com o nítido propósito de desinformar e de levar parcelas da população a erro quanto à lisura do sistema de votação, questionando a correção dos atos dos agentes públicos envolvidos no processo eleitoral (preparação, organização, eleição, apuração e divulgação do resultado), ao mesmo tempo em que, ao promover a desinformação, alimenta teorias que promovem fortalecimento dos laços que unem seguidores de determinada ideologia dita conservadora”.