No universo de rolos derivados de processos de recuperação judiciais do país, um caso emblemático é o da Agrisul Agrícola Ltda, um conglomerado de cana-de-açúcar e álcool. A batalha na 8ª Vara Cível de São José do Rio Preto, no interior paulista, se arrasta há quinze anos e envolve uma disputa milionária. O caso inclui acusações de fraudes em leilões ocorridos para tentar restabelecer a saúde financeira da companhia.
Na época em que a recuperação judicial foi aberta, a Agrisul vivia seu pior momento, acumulando dívidas cíveis, fiscais e trabalhistas, além de suspeitas de usar mão-de-obra análoga à escravidão. Aos poucos, o conglomerado foi se reerguendo, mas ainda tem muito a quitar. Com 929 reclamatórias em aberto, a Agrisul hoje está no 31º lugar do ranking que o Tribunal Superior do Trabalho divulga dos devedores trabalhistas do país. O número, no entanto, já foi bem pior, chegando a quase 2 000 ações judiciais de ex-empregados.
Uma das saídas desenhadas para esse quadro foi a de leiloar algumas propriedades e negócios da empresa por meio da criação de quatro lotes. Com o valor das vendas, a Agrisul poderia pagar as dívidas e virar a página. Mas não foi assim que a história se desenrolou. Empresas que venceram esses leilões acusam a Agrisul de dificultar a entrega do que foi arrematado.
Crédito em discussão
Quem comprou as terras do conglomerado no lote do Mato Grosso do Sul foi a Bams Participações, um player do mercado financeiro paulistano. Por R$ 31 milhões, a empresa adquiriu treze fazendas em um leilão que aconteceu em 2021, mas, até o momento, não colocou os pés nessas terras. Quando arrematou as propriedades, em vez de pagar em dinheiro, a Bams usou um crédito para fazer a aquisição – o que é permitido por lei em leilões judiciais.
Os problemas começaram quando a BBN Finance, empresa que repassou o crédito a Bams, foi à Justiça, obtendo uma liminar para suspender o negócio. A alegação é a de que a concessão do crédito teria sido fraudada. Em outros termos, segundo a BBN, o papel seria falso, o que os representantes legais da Bams negam de forma veemente: “a petição e a cessão de crédito foram juntadas no processo de recuperação judicial do Grupo CBAA pela própria BBN. A referida cessão e leilão foram publicadas 4 vezes em Diário Oficial, com o conhecimento do advogado da BBN”, afirmam os advogados da Bams em nota encaminhada à VEJA.
Troca de acusações
Ainda não houve sentença sobre o caso, mas o proprietário das empresas do grupo Agrisul, José Pessoa de Queiroz Bisneto, aproveitou o episódio para fazer acusações contra a Bams. “São estelionatários, é um caso de fraude”, disse a VEJA o empresário. Ele justificou não ter entregue as fazendas de R$ 31 milhões à Bams por causa da decisão judicial que suspendeu o crédito usado para pagamento.
Em nota enviada à VEJA, os representantes da Bams rebateram as declarações do empresário: “O próprio Sr. José Pessoa, diferentemente do que ele alega, participou e auxiliou na intermediação e conclusão do negócio jurídico. Suas assinaturas, que agora ele alega falsas, são perfeitamente válidas, conforme já restou demonstrado em dois laudos periciais elaborados por peritas experientes e de reputação reconhecida”.
Outro caso
Há outros dois leilões que estão sendo contestados na Justiça. Um deles, ocorrido em 2022, envolve o arremate de um lote de fazendas no Sergipe por 38,8 milhões de reais. A vencedora foi a Some. O problema surgiu quando uma outra empresa, a Fênix Recuperação de Crédito S/A, contestou na Justiça o resultado, alegando que deu o maior lance, mas o gesto não ficou registrado por causa de instabilidades no sistema no dia. A discussão está na Justiça e a Some apresentou um laudo afirmando que o argumento não procede.
Os imbróglios podem se arrastar por mais tempo ainda. Em dezembro do ano passado, foi pedido ao juiz da 8ª Vara Cível de São José do Rio Preto o encerramento da recuperação judicial – assim, quem se sentir injustiçado, teria como alternativa continuar brigando nos tribunais.
Investigação
De resquício das investigações do passado, há um procedimento contra a Agrisul e as empresas do conglomerado na Procuradoria Regional do Trabalho do Mato Grosso do Sul, estado que concentra a maior parte das ações judiciais do conglomerado e onde estão as terras da briga com a Bams. O caso foi aberto em 2023 a partir de um levantamento do Centro de Pesquisa Patrimonial do Tribunal Regional do Trabalho em conjunto com o Ministério Público.
“Foram identificadas diversas manobras dos ex-gestores formais e verdadeiros ‘donos’ do grupo, com o intuito de fraudar os credores, inclusive os trabalhistas”, disse a VEJA o procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, que cuida do caso. Se a suspeita se confirmar, a vendas podem ser anuladas e pode haver multas por fraude aos credores e por litigância de má-fé.