“Um homem de gênio é produzido por um conjunto complexo de circunstâncias, começando pelas hereditárias, passando pelas do ambiente e acabando em episódios mínimos de sorte.” Fernando Pessoa
Hereditariedade! Aquilo que recebemos de gerações anteriores, incluindo coisas boas e outras nem tanto. Antes de falarmos da importância do histórico familiar na saúde e na doença, é importante entender e desmistificar alguns conceitos básicos:
- Em primeiro lugar, a diferença entre os termos “genético” e “hereditário”. Quando dizemos “isso é genético”, nem sempre queremos dizer “isso é hereditário”. Por exemplo, todo câncer é consequência de alterações no material genético de algumas de nossas células, mas 90% dos casos de câncer não são hereditários, ou seja, são causados por fatores ambientais, e nesses casos as alterações do material genético do tecido canceroso não foram herdadas de nossos pais, aconteceram por fatores ambientais durante a vida. Também não serão transmitidos às gerações seguintes. Outro exemplo: a síndrome de Down. É sempre de origem genética e causada por alterações no material genético que ocorrem na formação daquele óvulo ou daquele espermatozoide, mas só em 1% das vezes é também hereditária, ou seja, aconteceu por uma predisposição hereditária do pai ou da mãe de uma pessoa com síndrome de Down.
- Nem tudo que é hereditário é congênito, nem sempre se manifesta já no nascimento ou nos primeiros anos de vida. Certas alterações hereditárias podem demorar muitas décadas para começar a apresentar seus sinais. Uma doença que começa a se manifestar aos 50 anos pode ser hereditária!
- O fato de haver uma única pessoa na família com determinado problema de saúde não significa que necessariamente não há hereditariedade envolvida nesse problema. A hereditariedade pode ser transmitida silenciosamente pelos genes por dezenas de gerações, mas se manifestar inicialmente em uma única pessoa da família. E, claro, o erro genético sempre começa por alguém…
- Nem tudo que é familiar é hereditário! Famílias compartilham, além de genes, hábitos, dietas e meio ambiente. Se for um costume na família fumar muito e desde a juventude, é enorme a probabilidade de que várias pessoas dessa família venham a ter ao longo da vida câncer de pulmão. Ao ver que na sua família várias pessoas tiveram ou esse tipo de câncer, isso não necessariamente significa que há um componente hereditário relacionado à genética do câncer de pulmão. Mas é importante ter essa informação, pois ela pode ser a gota d´água que faltava para você parar de fumar ou influenciar parentes e não parentes a não fumar!
Então, o que devemos observar sobre a saúde e doença de nossos familiares, que deveria “acender uma luz amarela” sinalizando que podemos estar em risco maior?
Câncer e hereditariedade
Apesar de a hereditariedade como fator de risco para o desenvolvimento de câncer representar apenas uma pequena fração do total de casos de câncer, como a doença é muito frequente, o número de pessoas afetadas por casos hereditários não é desprezível. Mais do que a prevalência de casos hereditários, o risco de desenvolver câncer entre os predispostos hereditariamente e entre seus familiares pode ser alto. No que se refere à hereditariedade do risco de vir a desenvolver certos tipos de câncer, como o de mama, ovário, intestino, próstata, pâncreas, pele ou útero (endométrio), os principais sinais de alerta são:
- Ocorrência na família de casos de câncer em uma idade mais precoce do que habitualmente aquele tipo de câncer ocorre. Por exemplo, a maioria dos casos de câncer de mama não hereditário acontece depois dos 50 anos de idade. Os hereditários, em geral, mais cedo;
- Presença na família de parentes nos quais o desenvolvimento de um tumor ocorreu em mais de um local daquele órgão em um curto período de tempo, por exemplo, o câncer acometeu dois locais da mama praticamente ao mesmo tempo;
- Presença na família de parentes com mais de um câncer primário em uma mesma pessoa, em órgãos bilaterais. Por exemplo, ter câncer nas duas mamas ou nos dois ovários;
- Existência na família mais de uma pessoa com o mesmo tipo de câncer; Quanto mais familiares com o mesmo tipo de câncer, maior a probabilidade de ser hereditário;
- Identificação de várias pessoas na família com cânceres diferentes, em especial quando esses tipos de câncer pertencem a um mesmo grupo de tumores, como, por exemplo, os do grupo mama/ovário/próstata/pâncreas, ou os do grupo estômago, intestino/útero (endométrio)/ovário;
- Ocorrência de casos de câncer em pessoas da família que tiveram também malformações ao nascimento;
- O fato de a família pertencer a certos grupos étnicos que são mais propensos a determinados tipos de câncer, como é o caso do câncer de mama e ovário em judeus ashkenazi.
Doenças frequentes e hereditariedade
A hereditariedade não está apenas no risco de virmos a desenvolver câncer. A história familiar é uma ferramenta importante para chamar a atenção para doenças que têm grande impacto na saúde pública, incluindo doença cardiovascular, derrame (AVC) e diabetes. Estudos feitos no Estado de Utah, nos EUA, demonstraram que apenas 14% das famílias daquela região tinham um histórico positivo para doença coronariana, porém elas representavam 72% dos eventos coronarianos precoces (antes dos 50 anos de idade) e 48% daqueles que tinham doença coronariana cardíaca em qualquer idade. No que se refere ao risco de derrame (AVC), este parece ser duas vezes maior para aqueles que têm um histórico familiar, quando comparado com aqueles que não têm tal histórico. Um estudo demonstrou que 26% dos participantes que tinham tido um AVC com mais de 45 anos de idade, informaram sobre uma história de derrame em um dos pais, e 12% descreveram um irmão que já teve derrame.
Outra doença frequente para cujo tratamento adequado/diagnóstico é importante conhecer a história familiar é o diabetes. Um estudo demonstrou que acrescentar a simples informação da história familiar a uma análise de predição de risco foi capaz de projetar novos diagnósticos em mais de 600000 pessoas na população americana. Ainda não existem testes laboratoriais úteis para identificar o componente genético dessas doenças, daí a importância de obter a história familiar e dar importância a ela.
Doenças raras e hereditariedade
Enquanto o componente familiar descrito acima nas doenças mais comuns é a somatória da hereditariedade com o meio ambiente que as famílias compartilham, em um grupo de doenças mais raras, porém muito numerosas, a história familiar aponta para uma doença genética clássica, com componente genético bastante determinante. Estamos falando de um grupo de mais de 10 000 doenças hereditárias!
Você já ouviu falar em fibrose cística, distrofias musculares, doença de Huntington, hemofilia, mucopolissacaridoses, doença de Fabry, porfirias, albinismo? São nomes pouco conhecidos da população em geral, mas muito conhecidos de quem tem na família uma dessas doenças tipicamente hereditárias, em que a genética fala mais alto que o meio ambiente. Saber se um familiar tem ou teve o diagnóstico de uma dessas doenças é fundamental para o aconselhamento genético. Por outro lado, obter essa informação junto aos familiares pode ser delicado, pois não raro isso implica rememorar momentos de tristeza que os familiares muitas vezes preferem esquecer; mas, respeitados os limites impostos por cada pessoa, são informações preciosas sobre problemas de saúde que ninguém quer ver repetidos dentro de sua família.
É fato incontestável que a tecnologia está nos aproximando rapidamente do momento em que poderemos, com um simples exame de sangue, descobrir se estamos ou não em risco de desenvolver ou de transmitir para futuras gerações esses riscos. Mas enquanto esse tipo de “check-up genético” ainda tem limitações técnicas, éticas e de acessibilidade, podemos, com uma atitude tão simples e barata quanto uma investigação familiar, tentar nos prevenir contra muitos desses problemas. Uma das maiores iniciativas para angariar dados familiares sobre saúde e doença, o Family Healthware Impact Trial, há pouco tempo concluiu que esse tipo de atividade tem um efeito multiplicador, fazendo com que o tema se torne cada vez mais discutido no ambiente familiar. Basta que alguém da família tome a iniciativa!
Segundo a Organização Mundial de Saúde, 85% dos casos de doença cardíaca, derrame e diabetes tipo 2, e 40% dos casos de câncer, podem ser prevenidos eliminando fatores de risco. Hereditariedade não é destino! Conhecer os seus riscos familiares pode propiciar a detecção precoce de um problema de saúde, e até a prevenção dele. Então, não perca tempo: aproveite este período de férias, quando as famílias se reúnem mais e com mais tempo, e pergunte ao seu pai, sua mãe, seus tios, seus avós, a respeito das doenças e até das causas de morte na família. Se for possível, tente encontrar e obter informações nos atestados de óbito e diários ou cartas dos familiares. Dê atenção especial às informações sobre causas de morte, idade em que as doenças foram diagnosticadas, idade do óbito e ascendência étnica dos seus ancestrais. Investigue se há casos de casamentos entre parentes, de morte “por causa desconhecida”, em especial que tenham ocorrido ainda na infância. Anote tudo e leve na próxima consulta com o seu médico! E exija dele uma atenção especial a essas informações que você trouxe a respeito de sua família.
Uma atitude simples e barata como essa talvez possa trazer a você e a seus familiares qualidade e muitos anos de vida!
Aproveito para informar os locais onde é possível fazer aconselhamento genético no Brasil. A Sociedade Brasileira de Genética Médica disponibiliza uma lista de instituições onde é feito aconselhamento genético (https://sbgm.org.br/servicos.asp), uma lista de médicos geneticistas por estado (https://sbgm.org.br/socios.asp), assim como uma lista de laboratórios especializados em exames de genética (https://sbgm.org.br/laboratorio). Para informações sobre uso de medicações, drogas, infecções na gravidez, a SBGM possui uma rede gratuita de informação sobre agentes teratogênicos (https://gravidez-segura.org) ou pelo telefone (51) 3308-8008.
–
Quem faz Letra de Médico
Adilson Costa, dermatologista
Adriana Vilarinho, dermatologista
Ana Claudia Arantes, geriatra
Antônio Frasson, mastologista
Artur Timerman, infectologista
Arthur Cukiert, neurologista
Ben-Hur Ferraz Neto, cirurgião
Bernardo Garicochea, oncologista
Claudia Cozer Kalil, endocrinologista
Claudio Lottenberg, oftalmologista
Daniel Magnoni, nutrólogo
David Uip, infectologista
Edson Borges, especialista em reprodução assistida
Fernando Maluf, oncologista
Freddy Eliaschewitz, endocrinologista
Jardis Volpi, dermatologista
José Alexandre Crippa, psiquiatra
Luiz Rohde, psiquiatra
Luiz Kowalski, oncologista
Marcus Vinicius Bolivar Malachias, cardiologista
Marianne Pinotti, ginecologista
Mauro Fisberg, pediatra
Miguel Srougi, urologista
Paulo Hoff, oncologista
Paulo Zogaib, medico do esporte
Raul Cutait, cirurgião
Roberto Kalil – cardiologista
Ronaldo Laranjeira, psiquiatra
Salmo Raskin, geneticista
Sergio Podgaec, ginecologista
Sergio Simon, oncologista