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O caso Christian Eriksen: DNA pode explicar morte súbita em atletas jovens

Em geral, episódios de parada cardíaca, como a que ocorreu com o jogador dinamarquês, têm uma causa genética

Por Salmo Raskin
Atualizado em 7 jul 2021, 19h22 - Publicado em 6 jul 2021, 18h12
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  • O episódio de parada cardíaca ocorrida com o jogador de futebol dinamarquês Christian Eriksen, de 29 anos, em pleno jogo da Eurocopa, trouxe mais uma vez à tona uma sensação de perplexidade a todos que, seja no estádio ou em suas casas, viram o atleta, do nada, cair desacordado. A situação foi dramática, até porque ocorreu em um lugar público, com um atleta jovem, renomado e muito saudável, e ser atleta é considerado (e é) um hábito saudável que prolonga e melhora a qualidade de vida.

    Morte súbita de causa cardíaca é um evento que ocorre de forma inesperada dentro de uma hora do primeiro sintoma. Pode ocorrer após uma longa história de doença cardíaca, mas também pode ser a primeira manifestação de doença cardíaca em uma pessoa aparentemente saudável. Teoricamente a  incidência de morte súbita de causa cardíaca durante o exercício físico é baixa, cerca de 5–20 casos por milhão, por ano. A incidência de morte súbita de causa cardíaca nos Estados Unidos varia entre 180.000 e 450.000 casos anualmente, e é responsável por mais de 50% de todas as mortes por doença cardíaca coronária e 15% a 20% de todas as mortes.

    Em geral só ficamos sabendo destes ocorridos quando ocorre em atletas de alta performance e famosos, mas para cada famoso que ficamos sabendo através da mídia, incontáveis casos acontecem entre aqueles que não atraem tanto holofote. Entre os especialistas há um consenso de que estes dados são muito subestimados, e na prática é uma condição relativamente frequente.

    LEIA TAMBÉM: Caso Eriksen: o que aconteceu e como agir se alguém sofrer um mal súbito

    As mortes acontecem em especial em corredores e ginastas. Jogadores de futebol estão em terceiro lugar nesta escala. Os casos são cerca de 5 vezes mais frequentes em homens do que em mulheres. De acordo com estudo feito na Dinamarca, terra do próprio Christian, adultos com idades entre 35 e 49 anos têm 9,4 vezes o risco de morrer de morte súbita de causa cardíaca, em comparação com pessoas mais jovens com idades entre 1 e 35 anos.

    Em maiores de 35 anos de idade acontece principalmente como consequência de súbito infarto do miocárdio, lesão das válvulas cardíacas, insuficiência cardíaca  ou doença coronariana, que respondem por mais de 90% dos casos. Outra parcela dos casos ocorre porque a pessoa já tinha uma malformação na estrutura do coração desde o nascimento (congênita), mesmo que não soubesse disto. Em menores de 35 anos de idade, em geral, a causa não é nenhuma destas acima descritas.

    Em geral, 15 a 20% dos casos de morte súbita tem um causa genética, mas este porcentual é maior naqueles com idade inferior a 35 anos. Nesta faixa etária, predominam dois grupos de doenças com origem genética e hereditária; 1) As miocardiopatias, que são condições que afetam a integridade do músculo cardíaco; 2) As canalopatias, que são doenças que impactam função elétrica do coração com consequente alteração no ritmo dos batimentos cardíacos.

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    Nas canalopatias, genes mutados não produzem corretamente proteínas que servem como canais de íons que transportam o impulso elétrico e fazem o coração bater regularmente. Entre as miocardiopatias destacam-se a hipertrófica, a arritmogênica do ventrículo direito e a dilatada. Já entre as canalopatias destacam-se a Síndrome de Brugada, Síndrome do QT longo, e Taquicardia ventricular catecolaminergica polimórfica. No grupo mais jovem são também causas relevantes as miocardites e aquelas devido a abuso de substâncias. Apesar desta divisão clara de causas por faixa etária, não se pode descartar a possibilidade de infarto do miocárdio em uma pessoa mais jovem, e nem de uma miocardiopatia ou canalopatia numa pessoa com mais de 35 anos de idade.

    Não é incomum não se chegar a conclusão da causa de morte súbita cardíaca. Naqueles que receberam ressuscitação cardio-pulmonar a tempo e sobreviveram, como foi o caso de Christian, em muitos casos os exames em cardiologia não identificam a causa. Naqueles que não sobrevivem, muitas vezes nem mesmo a autópsia (neste caso chamada de autópsia molecular) é capaz de identificar a causa. Nestas situações a genética pode ser decisiva na hora de identificar a causa.

    Estas alterações genéticas ou ocorrem por acidentes genéticos na formação daquela pessoa, ou são herdadas de um dos pais, muito raramente dos dois. A pessoa que tem esta alteração genética, em geral, tem uma chance de 50% de transmiti-la para cada filho. Importante ressaltar que ter algumas destas alterações não é sinônimo de que um episódio de morte súbita vá obrigatoriamente ocorrer, mas sim de um risco aumentado em relação a outras pessoas da população.

    Quando o episódio ocorre e a pessoa não é ressuscitada, exames genéticos pós-morte podem ser realizados e ter importância tanto para entender o que aconteceu, facilitando inclusive o processo de luto dos familiares, como para tomar atitudes preventivas e terapêuticas em relação a outras pessoas da família, pela identificação genética e clínica de parentes em risco, como forma de prevenção primária.

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    Nestes casos é de boa prática médica a realização de Aconselhamento genético antes de iniciar o processo que envolve os exames genéticos, que nesta situação de uma possível doença hereditária cardíaca são sempre carregados de forte componente emocional. Se feito no contexto pós-morte (teste genético no falecido), acrescentam-se questões éticas, legais e financeiras (https://www.nature.com/articles/s41431-019-0445-y).  Aconselhamento genético pós-teste também é muito importante, para possibilitar a correta interpretação dos achados do exame genéticos, e o médico geneticista é o profissional mais treinado para esta tarefa.

    Se por um lado já conhecemos dezenas de genes que quando mutados podem gerar esta predisposição, por outro hoje temos tecnologias para testar em um único exame todos estes genes conhecidos, mesmo em amostras pós-morte. Estes estudos tem esclarecido cerca de metade dos casos em jovens sem alteração na estrutura anatômica do coração, sem infarto e sem doença coronariana prévia (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28255936).

    Importante ressaltar que como não conhecemos todas as causas genéticas de morte súbita de causa cardíaca, é mais útil na prática médica ter a oportunidade de fazer o teste genético no DNA da pessoa que manifestou os sinais e sintomas (esteja ela viva ou morta), do que apenas em familiares sem nenhum sinal e sintoma, após a morte de alguém que nunca realizou o teste genético. Uma história familiar de pessoas que tiveram morte súbita e prematura deve ser sempre informada pelas pessoa aos seus médicos pois representa um “cartão amarelo” que torna a avaliação genética fortemente recomendada.

    A causa do ocorrido com o jogador Christian ainda não foi divulgada, mas o pouco que se sabe leva justamente a hipótese diagnóstica de uma causa genética. Ele teve tecnicamente uma “parada cardíaca súbita e abortada”, definida como uma parada circulatória inesperada, ocorrendo dentro de 1 hora do início dos sintomas agudos, que é revertida com sucesso por manobras de ressuscitação. Foi justamente o que aconteceu com Christian, cujo coração voltou a funcionar graças ao rápido atendimento médico que incluiu um forte impulso elétrico gerado por um aparelho desfibrilador externo automático (DEA) que estava disponível, como desejável, no estádio de futebol.

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    Jovem e atleta de alta performance vivendo no primeiro mundo, certamente já fez inúmeros exames cardíacos anteriormente, como eletrocardiogramas, ecocardiograma e testes ergométricos, que não apontaram nenhum problema, descartando alterações na anatomia do coração e das artérias coronárias, assim como no ritmo cardíaco. Seu médico cardiologista que o acompanhou na Inglaterra até 2019 declarou que Eriksen fez inúmeros exames, e que até então absolutamente nada de diferente foi detectado. Também podemos descartar como causa o que se denomina de “Commotio Cordis”, um trauma direto na região anterior do tórax, podendo levar a uma arritmia cardíaca muito grave, chamada de fibrilação ventricular. No caso de Christian foi o contrário, uma arritmia que levou à queda (trauma).

    Miocardite por Covid-19 ou pela vacina para Covbid-19 poderiam em tese ser causas, mas além de serem raras, Christian a principio nunca teve Covid-19(jogadores no nível de Christian são testados para Covid-19 inúmeras vezes) e nunca foi vacinado para Covid-19. Necessitou da implantação no coração de um pequeno aparelho chamado Cardioversor Desfibrilador (CDI) para monitorar e regularizar o ritmo cardíaco, como forma de prevenção secundária. A decisão de implantar o aparelho sinaliza para uma causa que não pode ser modificada, uma condição clínica definitiva, como são as decorrentes de alterações genéticas. Certamente Christian já deve estar fazendo exames genéticos e em breve talvez os resultados sejam divulgados.

    Nunca é demais lembrar que aproximadamente 50% das paradas cardíacas ocorrem em indivíduos sem uma doença cardíaca conhecida, mas a maioria sofre de doença isquêmica cardíaca oculta. Como consequência, a abordagem mais eficaz para prevenir Morte Súbita de causa cardíaca na população começa com cada um de nós procurando ter uma alimentação saudável, se exercitar regularmente, não fumar nem beber, e dentro do possível, ter uma vida menos estressada.

    Fundamental também é fazer consultas periódicas com clínico geral ou cardiologista, que são treinados para quantificar o risco individual de desenvolver doença isquêmica do coração com base em gráficos de pontuação de risco, seguido pelo controle de fatores de risco, como dosagem rotineira de colesterol, glicose, aferição da pressão arterial, eliminação do tabagismo e manutenção de adequado índice de massa corporal. J

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    á não há mais dúvida que há um importante componente genético gerando uma predisposição também nestes casos de doença isquêmica cardíaca, e estamos próximos de poder oferecer um teste genético analisando muitos pontos do material genético ao mesmo tempo, para predizer em qualquer pessoa, mesmo sem sintomas ou histórico familiar, quem está em alto risco, exame que em breve será incorporado ao arsenal dos médicos, nas esteira da medicina personalizada (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33791884/). Ao identificar nossas predisposições genéticas poderemos viver mais, melhor e sem tantos sustos como o que levou o jogador Christian Eriksen e seus fãs.

    Por fim, o Brasil poderia aprender com o episódio do jogador Christian Eriksen, que só está vivo porque havia no local do evento um DEA e, claro, pessoas que sabiam utilizá-lo. DEAs custam cerca de dez mil reais a unidade, e o Brasil poderia e deveria fazer um investimento em um Programa Nacional de Ressucitação Cardíopulmonar, o que salvaria muitas vidas. Visto que se trata da situação da maior emergência médica imaginável, incluir neste programa a difusão e descentralização do DEA, não só nos estádios de futebol mais conhecidos, mas em todas as praças esportivas e em inúmeros outros ambientes públicos como aeroportos, escolas, vias públicas, supermercados, teatros, cinemas, shopping centers.

    Na Inglaterra DEAs são encontrados inclusive nas antigas cabines de telefone publico, em todo os cantos. Em Estocolmo a cada 200 metros há um DEA. Por pura coincidência, a Dinamarca, país de Christan Eriksen, é um dos maiores exemplos mundiais de cuidados para minimizar a Morte Súbita de causa cardíaca.  Iniciativas dinamarquesas variam desde atitudes mais simples como o treinamento obrigatório em Ressucitação Cardioplumonar no ensino médio e na obtenção da carteira de motorista, até projetos maiores como ter desenvolvido em 2011, o primeiro registro de DEA em todo o país, o que permite localizar rapidamente o local mais próximo aonde um DEA está disponível.

    As autoridades de saúde dinamarquesas reforçam a importância do uso de DEA por meio de campanhas públicas frequentes sobre a importância do registro e da disponibilidade de desfibrilador automático. Um estudo de pacientes que tiveram parada cardíaca fora do hospital na Dinamarca descobriu que a chance de desfibrilação quase triplicou (13,8% vs 4,8%) e a sobrevida em 30 dias quase dobrou (28,8% vs 16,4%), quando o DEA  mais próximo estava acessível. Outra iniciativa dinamarquesa inteligente é o programa de atendimento ao cidadão “HeartRunner”, que tem mais de 115.000 pessoas treinadas em ressuscitação cardiopulmonar, que podem ser notificadas por um aplicativo de smartphone sobre uma parada cardíaca nas proximidades de uma corrida.

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    Um estudo piloto desse programa constatou que os cidadãos que responderam ao atendimento chegaram antes dos serviços médicos de emergência quase na metade das vezes, e isso foi associado a um aumento de mais de três vezes nas chances de desfibrilação por espectador. A Premier  League, liga que comanda o Campeonato Inglês de futebol, impactada pelo episódio com o Christian Eriksen, vai doar  2 mil desfibriladores a clubes de base no Reino Unido. Os recursos humanos para usar corretamente os DEAs podem ser treinados facilmente e não precisam ser médicos.

    Quanto mais rápido uma pessoa em morte súbita de causa cardíaca recebe a desfibrilação, melhores as suas chances de sobreviver. Os médicos especialistas costumam usar o jargão “tempo é miocárdio”, visto que a cada minuto sem desfibrilação, a chance de sobreviver cai de 7% a 10%! A taxa de sobrevivência de um episódio de morte súbita é de 8% em países desenvolvidos, mas em locais onde há um DEA bem próximo e treinamento em massa da população para oferecer suporte básico de vida, a chance de sobrevivência pode dobrar.

    Lembrando que aqueles que sabem que tem um problema no coração e fazem acompanhamento médico são os que tem menor chance de morrer em um evento deste tipo. Aqueles que, em tese, são os mais saudáveis, são os menos preocupados e menos preparados para um episódio como este, e compõem a maior parte da população. Portanto, o problema deveria ser encarado pelas autoridades como de Saúde Pública.

    Letra de Médico - Salmo Raskin
    (Gilberto Tadday/VEJA)
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