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Hemofilia: um grande salto em direção a cura

Um estudo inédito apresentado durante o 56º Congresso Americano de Hematologia mostrou que é possível corrigir defeitos genéticos, como a hemofilia

Por Bernardo Garicochea
Atualizado em 15 mar 2017, 12h00 - Publicado em 15 mar 2017, 12h00
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  • A hemofilia é uma doença genética que atinge basicamente meninos e que provoca propensão à hemorragia. Muitos dos portadores de hemofilia têm formas brandas da doença e conseguem ter vidas praticamente sem sobressaltos. Outros, no entanto, apresentam formas muito graves e a vida destas pessoas e de seus familiares é uma provação muito dura.

    Estas crianças nascem com um defeito no cromossomo X, sempre transmitido pela mãe, que impede a produção adequada de uma de duas proteínas centrais para a coagulação do sangue, o fator VIII e o Fator IX. A maioria dos hemofílicos tem deficiência na produção do fator VIII, e são chamados de hemofílicos A. Os que têm deficiência no fator IX, são chamados de hemofílicos B.

    A intensidade das hemorragias depende da quantidade de fator VIII ou IX que consegue ser produzida por estas crianças. Casos graves são descobertos já nos primeiros meses de vida. Portadores de hemofilia formam hematomas com facilidade e podem apresentar muito cedo na vida hemorragias nos joelhos e cotovelos, que podem causar deformidades permanentes nas articulações.

    A única saída para estes pacientes é o tratamento com concentrados de fator VIII ou IX que são produzidos a partir do plasma de diversos doadores de sangue. O problema começa aí. Para diminuírem o sofrimento causado pelas hemorragias, eles necessitam receber estes concentrados com frequências variáveis. Vai viajar ? Tem que arrumar toda uma estratégia para levar o fator junto. É a diferença entre vida e morte.

    Além disso, nas últimas décadas, os pacientes que mais precisavam destes concentrados eram os que mais sofriam com a principal armadilha escondida dentro dos frascos. Nos início foi o vírus da aids, que dizimou milhares de hemofílicos em alguns anos. Hoje, muitos seguem lutando contra hepatites adquiridas pela transfusão destes derivados de sangue humano.

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    Na dia 05 de dezembro, uma frágil, quase inconspícua, mas muito sorridente personagem subiu no auditório do Centro de Convenções de San Diego, durante o 56º Congresso Americano de Hematologia, para contar uma história que pode parecer um conto de fadas para todas as pessoas que sofrem de hemofilia. Para nós, médicos, revelou-se uma das histórias de pesquisa mais fascinante da ultima década, que reúne acaso, talento, tecnologia e paixão pela ciência.

    A Dra Lindsay George nos anunciava que possivelmente havia encontrado uma forma de curar uma doença genética, pela primeira vez na história da medicina. Tudo começa com um caso raro: um rapaz de 23 anos, natural de Pádua, Itália, era portador de uma doença que causava tromboses repetidas. Algo muito incomum nesta idade. Vários membros da família dele tinham queixas semelhantes, vários tinham morrido de embolia pulmonar ou trombose no fígado. Um grupo de cientistas curiosos com este caso raro, descobriu que este paciente tinha uma mutação no gene do fator IX que aumentava em até 10 vezes a sua atividade. Um super-fator IX.

    A Dra George soube deste caso e teve uma ideia genial. Se utilizando de conhecimentos que vêm se acumulando nos últimos 15 anos, ela desenvolveu um tipo especial de vírus da gripe (adenovírus atenuado) que era capaz de albergar o gene do fator IX do nosso heroi de Pádua. Este vírus é muito especial. Ele não provoca nenhum sintoma da infecção porque está modificado geneticamente. Além disso, ele tem um magnetismo especial pelas células do fígado, o exato local onde se produz o fator IX.

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    Finalmente, como este vírus carrega um super- fator IX, uma quantidade menor de vírus poderia elevar o fator IX a níveis seguros, sem que o paciente corresse o risco do sistema imune estranhar uma quantidade muito grande de proteínas estranhas, provenientes do vírus.

    Nove pacientes com hemofilia B grave foram tratados. O aumento nos níveis do fator IX foi o suficiente para que todos os casos pudessem ser considerados seguros. Apenas um paciente destes oito precisou de uma infusão de concentrado de fator IX . Estes pacientes precisavam de infusões, em média, a cada duas ou três semanas! Somado o tempo de tratamento destes nove pacientes, a Dra George contabiliza 238 semanas de acompanhamento. Meses sem precisar de infusão de concentrado de fator IX.

    O primeiro paciente do estudo já passou de um ano de acompanhamento, e com uma única dose do vírus, encontra-se com níveis de fator IX longe de serem preocupantes. Melhor ainda, nenhum paciente teve nenhum efeito negativo com o tratamento. Quanto tempo ele será eficiente ? Serão necessárias outras infusões ? Haverá efeitos tardios que ainda não podem ser avaliados ?

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    Todas são perguntas que ainda necessitam de resposta que só o tempo proverá. Até lá, fica uma sensação parecida com a de astrofísicos que descobrem um planeta novo. Nós podemos corrigir defeitos genéticos ! Serão defeitos simples no início, mas que aliviarão a vida de milhões de pessoas.

    Dedico este texto ao amigo e mentor, Otavio Gherardi, hemofílico e fundador da Unidade de Hemofilia do Hospital Brigadeiro, que certamente estaria eufórico com este imenso avanço científico, se pudesse estar hoje ao nosso lado.

     

    Bernardo Garicochea
    (Ricardo Matsukawa/VEJA.com)
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