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Fanatismo existe e deve ser reconhecido como tal

No mundo contemporâneo, o fanatismo está sendo negado como se pertencesse apenas ao passado

Por José Alexandre Crippa
Atualizado em 20 out 2020, 12h11 - Publicado em 20 jun 2018, 16h26

A comentadíssima série-documentário Wild Wild Country (USA, 2018) detalha, de modo brilhante, em seis capítulos, uma parte assustadora da história do líder espiritual indiano Bhagwan Rajneesh (1931-1990; mais tarde conhecido como Osho), de sua então assistente pessoal Ma Anand Sheela (1949-) e de seus fanáticos seguidores.

Eles criaram a comunidade de Rajneeshpuram (com mais de 10.000 seguidores), próxima da pequena cidade de Antelope (com 40 habitantes), ambas localizadas “entre o nada e lugar nenhum”, no estado de Oregon, nos Estados Unidos. Milhares de pessoas, a maior parte com ótimo nível social, renda, educação e formação profissional se mudaram para a comunidade a fim de seguir o seu mestre e buscar um novo estilo de vida. Aparentemente, fugiam de suas realidades insuficientes procurando um refúgio na fantasia para evitar a convivência com o sofrimento e a imperfeição.

Doutrinação

Entre os fundamentos da doutrina estavam a aceitação das relações afetivas de múltiplas formas, incluindo a procura da iluminação por meio de meditação, hedonismo e da libertação sexual, emocional e institucional. Embora a seita pregasse a abnegação dos bens materiais, ninguém era capaz de questionar o fato de seu líder ostentar dezenas de luxuosos Rolls-Royce e de possuir centenas de relógios com pulseiras de ouro e brilhantes, em uma aparente necessidade compulsiva de controlar o tempo com extravagância. Usavam roupas com diferentes tons de vermelho, menos Rajneesh, obviamente – em um curioso fenômeno que combinava o daltonismo das cores e a cegueira do óbvio.

Apesar da aparentemente inofensiva, em resposta à imediata e crescente rejeição da comunidade conservadora do condado local, o desfecho que se sucede não parece acreditável mesmo se tivesse sido escrito por um criativo roteirista de ficção. O grupo realizou um ataque bioterrorista, planejou matar o procurador dos Estados Unidos, projetou envenenamentos, influenciou as eleições do condado, entre outras ações individuais e coletivas que aparentam sair de um livro não publicado de George Orwell sobre uma fictícia sociedade distópica (tal qual o livro homônimo do escritor inglês, curiosamente o ano de 1984 talvez tenha sido o ápice da insensatez daquela comunidade).

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Contexto histórico

O mais interessante do documentário provavelmente seja o fato de, naquele período controverso da seita nos Estados Unidos, testemunharmos diferentes matizes de fanatismo: religioso, político, militar e pitadas de idolatria de um Superstar pop. Observa-se a coesão e sensação de pertencimento por meio de símbolos e cores; o inimigo externo comum em uma simplista visão dualística de mundo; a crença na infalibilidade das convicções e/ou doutrinas; o amplo desejo de validar e impor a “absoluta verdade” na sociedade e a identificação irracional ao líder de sua devoção com o óbvio culto a personalidade. Essas características são facilmente observadas nos principais regimes totalitários que definiram o século XX, nos atuais líderes populistas autoritários e nas formas mais violentas de fundamentalismo religioso contemporâneo.

Fanatismo

Mas o que diferencia uma pessoa fanática das outras? Talvez a recusa da primeira em acreditar nos mais claros argumentos críticos ou provas diante de fatos consumados, recusando firmemente de obter conclusões de suas próprias experiências ou observações do real – simplesmente negando suas existências e seguindo a opinião do grupo. O fanático acredita na supremacia de suas ideias, crenças ou cultura, muitas vezes querendo sumariamente impô-las.

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Assim, a própria crença na infalibilidade de sua doutrina ou no seu líder ajuda-lhe a negar as suas contradições e desprazeres da realidade. De certa forma, o fanático encontra-se em uma posição narcísica projetando no líder ou objeto de culto a perfeição que idealiza para si. Projeta seu egocentrismo naqueles que pensam diferente os seus próprios defeitos negados – não sendo incomum rotular os outros de autoritários, preconceituosos e… fanáticos!

A teoria psicanalítica descreve o mecanismo psíquico inconsciente do ser humano em três partes. O id, dirigido pelo desejo e busca da satisfação de nossas necessidades primárias, como alimento e sexo. O superego, que é o aspecto moral da personalidade do indivíduo, mostrando a edificação de todos os valores sociais, familiares e culturais que foram interiorizados pela pessoa ao longo da vida e que atuam como controladores dos instintos, desejos e impulsos primitivos, reprimindo o id.

Por fim, o ego, que mantém a harmonia entre os desejos do id e as repressões do superego. Neste contexto, de forma geral, os sannyasins (como eram chamados os seguidores da seita) em Rajneeshpuram entregavam seus superegos ao seu líder ou ao coletivismo da doutrina. Ao mesmo tempo, o id era amplamente estimulado na busca incondicional do prazer com a total a negação de qualquer forma de dor e sofrimento. O resultado disso tudo foi uma coletividade com uma estrutura egoica dissolvida, incapaz de realizar o julgamento crítico da realidade e facilmente manipulável.

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Os tons do fanatismo moderno

Embora o fanatismo possa ser considerado um fenômeno universal, muitas pessoas não são fanáticas, mesmo compartilhando uma determinada ideologia política, religião ou estilo de vida. Apesar disto, tendemos a acreditar que este fenômeno está tão distante do mundo contemporâneo quanto as imagens em preto-e-branco das atrocidades do nazismo na II Guerra ou das gravações com cores desbotadas em VHS de Wild Wild Country.

Na verdade, o fanatismo continua muito presente na atualidade, seja em determinadas religiões, na idolatria a líderes políticos, em algumas formas extremas de ativismo social e até no mundo do entretenimento, como nos fenômenos de teen idols e nos torcedores violentos de times de futebol. Ainda, é um fenômeno também observável até no mundo dos negócios, como nas empresas de distribuição de suplementos alimentares, rastreadores de veículos ou produtos de limpeza, com a promessa de que seus revendedores poderiam se tornar milionários, em um esquema que lembra as “pirâmides financeiras”.

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Mais recentemente veio a público o escândalo da seita NXIVM (se pronuncia nexium) que recrutava mulheres para serem escravas sexuais de poderosos de Hollywood. As vítimas se deixavam ser marcadas como gado com caneta cauterizadora e coagidas a ter uma restrição alimentar absurda, além de realizarem trabalhos sexuais e domésticos para os membros da organização. Portanto, não se trata do que acreditam que tornam as pessoas fanáticas, mas como elas acreditam.

Como reflexão final, talvez a melhor maneira de prevenir o indivíduo e a sociedade em relação ao fanatismo é reconhecer que ele existe, que o ser humano é falível e que o nosso senso crítico e racionalidade sempre devem ser estimulados. Devemos permanentemente ter a curiosidade de questionar, debater e duvidar para ampliar o contato com a razão na busca de um equilíbrio entre a tensão do que queremos acreditar e a potencial verdade. Caso contrário, novos enredos surreais certamente poderão virar roteiro de vários documentários… Ao menos é o que esperam os fanáticos por séries!

 

José Alexandre Crippa

 

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