A Volkswagen parou. Mandou para casa 6 000 funcionários. Faltam autopeças essenciais fornecidas por 49 fábricas inundadas no Rio Grande do Sul.
O tempo e o vento deixaram a empresa num dilema sobre o estoque de alguns componentes: consumi-lo na produção em São Bernardo do Campo, Taubaté e São Carlos, em São Paulo, ou usá-lo na linha de montagem de São José dos Pinhais, no Paraná, berçário do SUV T-Cross. Escolheu dobrar a aposta na liderança do mercado de veículos utilitários urbanos.
A Volks pôs em marcha, também, um plano de prevenção e adaptação às intempéries no país. Resolveu importar autopeças e já negocia garantia de suprimento na China, na Alemanha e nos Estados Unidos.
A concorrente General Motors continua ilhada em Gravataí, onde tem 5 000 empregados, assim como a fabricante de máquinas agrícolas AGCO, em Canoas. Um em cada quatro residentes dessas duas cidades gaúchas é vítima do desastre climático.
Ao norte, distante quatro horas de viagem de avião, três centenas de indústrias da Zona Franca de Manaus mobilizam-se na antecipação de compras de matérias-primas, peças e componentes, e em negociações de férias coletivas de parte dos 110 000 empregados. Seguem alertas sobre a seca amazônica, que já começou e deve se agravar a partir de junho.
Prognósticos da Defesa Civil indicam estiagem severa como a do ano passado, a pior no histórico regional, quando as fábricas perderam 16% na produção e tiveram custos extras de 1,5 bilhão de reais na adaptação do cronograma de suprimento às dificuldades de transporte. Quase dois terços do fluxo de mercadorias dependem da navegação fluvial. Antes, a calha vazia de nove rios interditava a cabotagem por até cinco semanas, mas em 2023 a seca durou o dobro do tempo e há possibilidade de ser ainda mais longa no período crítico, entre setembro e novembro.
“Líderes vacilam e deixam país vulnerável aos desastres”
Na Amazônia, hoje, a torcida é pela baixa intensidade de um fenômeno climático conhecido como La Niña, derivado do resfriamento do Oceano Pacífico. Ele costuma provocar atraso nas chuvas do último trimestre. Se for mais débil do que de costume, pode ajudar a limitar a severidade da seca no período de entrega de produtos eletrônicos, a especialidade da Zona Franca, na temporada comercial pré-natalina.
O histórico da seca na região é preocupante, porque ela aumentou muito nas últimas quatro décadas. O período de estiagem severa, que durava quatro meses, agora é de cinco meses. A persistir esse ritmo, o ambiente amazônico tende a se assemelhar à savana tropical, projetam meteorologistas. Seca duradoura por seis meses é coisa de cerrado, típica de Brasília.
Evidências de mudanças climáticas se espraiam da Amazônia aos pampas gaúchos. No Nordeste, cinco municípios baianos já estão em processo de desertificação, informa o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden): Juazeiro, Abaré, Chorrochó, Rodelas e Macururé somam 260 000 habitantes.
Sete em cada dez municípios brasileiros estão absolutamente despreparados para a nova realidade. Ao contrário das cidades gaúchas, 3 679 municípios não têm ou, quando muito, têm baixíssima capacidade de adaptação, prevenção ou políticas de mitigação dos efeitos de desastres climáticos, informa o Ministério do Meio Ambiente.
Semana passada, a secretária de Mudança do Clima, Ana Toni, levou à Câmara uma série de estudos sobre as debilidades nacionais. Comparou: “Se a gente tivesse uma febre permanente de 2 graus, 3 graus, 4 graus a mais, constantemente, nosso sistema biológico entraria em colapso. É exatamente isso que está acontecendo, num crescente, e estamos vulneráveis em todas as regiões do Brasil”.
A saída, por óbvio, é política, mas líderes vacilam na arquitetura de novas políticas. Governo e Congresso, por exemplo, promovem uma reforma omissa na tributação mais elevada que poderia desestimular o consumo intensivo de derivados de petróleo, como plásticos. Lula repete-se em discursos sobre a gravidade das mudanças climáticas, mas estimula a Petrobras a expandir negócios com combustíveis fósseis, adiando a transição energética. Aprova-se um modesto Fundo do Clima com 10 bilhões de reais e, nos dias seguintes, tem-se uma tragédia climática no Sul com perdas e danos visivelmente muito superiores — e por enquanto incalculáveis.
O país segue refém da flagrante incoerência entre a retórica e a ação política, entregue à esperança, aquele “urubu pintado de verde” da poesia do gaúcho Mario Quintana.
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894