Dez anos atrás, quando apareceu na Câmara, era um projeto de emenda constitucional de 129 palavras. Pretendia alterar um único artigo (nº 77) da Constituição para impedir a realização de eleições entre feriados.
Havia uma dose de bom-senso na proposta, para desestimular a ausência dos eleitores. Isso porque, se a disputa estava apertada, o partido no governo até criava um feriado na véspera da votação.
Aconteceu no Rio, em 2008. O então governador Sergio Cabral decretou “ponto facultativo” para o funcionalismo público na véspera da eleição municipal para ajudar na eleição do candidato do seu MDB, Eduardo Paes. Ele venceu com apenas 55,2 mil votos de vantagem em relação a Fernando Gabeira, do PV, num eleitorado de 3,5 milhões. Em bairros como Copacabana, o mais populoso, a abstenção superou 30%.
Três anos depois, o deputado paulista Carlos Sampaio (PSDB) apresentou um projeto de emenda constitucional para proibir coincidências de eleições com feriados, e, também, manobras como a do Rio.
O texto ficou estacionado por uma década na fila de votações da Câmara, até que na noite de terça-feira passada o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) surpreendeu os parlamentares com a súbita decisão de votar a emenda. Ela ganhou tantos enxertos que seu tamanho foi multiplicado por 15 em relação ao original.
O que era apenas uma proibição de eleições entre feriados acabou transformado numa ampla reforma político-eleitoral, ambígua em 1.900 palavras conforme a conveniência de múltiplos interesses.
O novo texto continha um pouco de quase tudo — desde a permissão para criação de partidos municipais até voto distrital, além do fim do segundo turno num sistema de eleição de múltipla escolha, o que eliminaria a dualidade ou polarização.
Enxugou-se a emenda na depuração em plenário. Extraiu-se, principalmente, o voto distrital ou “distritão”, que asseguraria vantagem a candidatos-celebridade, favoreceria quem tivesse mais dinheiro, enfraqueceria os partidos e dificultaria a renovação das bancadas legislativas em todos os níveis. Já havia sido rejeitado três vezes no Congresso.
Não foi acaso. Entrou no texto como distração, tipo bode-na-sala. Sendo coisa ruim para os negócios da maioria dos partidos organizados, logo se fez um acordo: trocou-se a retirada do “bode”, pela ressurreição das coligações partidárias, um tipo de pacto eleitoral com capacidade de pulverizar a representação parlamentar, diluir a identidade dos partidos organizados e impulsionar negócios no mercado de aluguel de legendas partidárias.
O objetivo era dar sobrevida àqueles partidos tradicionais com pequeno lastro de votos, mas, sobretudo, proporcionar fôlego às legendas de aluguel. As coligações foram proibidas pelo próprio Congresso em 2017, valendo a partir da eleição de 2020, exatamente para fortalecer organizações com densidade nas urnas. Previa-se que, sem coligações e com exigências crescentes (cláusula de barreira), muitos partidos à direita e à esquerda não sobreviveriam às eleições gerais de 2022.
Prevaleceu o acordo. Matou-se o “distritão” e, na barganha, ressuscitou-se a coligação. O placar foi acachapante (365 votos a favor contra 3, e 3 abstenções). A emenda constitucional passou no primeiro turno — a segunda rodada está prevista para a próxima semana. Se confirmada na Câmara, vai ao Senado, onde as perspectivas não são favoráveis. Lá, talvez, seja derrubada.
O texto inicial de 129 palavras agora tem 1.750.
Detalhe: autor da versão original, deputado Carlos Sampaio, acabou votando contra a própria proposta apresentada em 2011, onde somente se proibiam eleições entre feriados. Mais tarde mandou à direção da Câmara um pedido de correção no registro de votação: “Foi engano.”