Depois de 27 dias no mar, o cargueiro de 200 metros de extensão por 36 de largura aportou na semana passada em Suape, meia centena de quilômetros ao sul do Recife. A viagem do Explorer 1 é um teste de inovação tecnológica em navegação de longo curso com propulsão híbrida (combustível convencional e gás natural). Mas é, principalmente, uma operação empresarial ousada na logística e original no comércio: de uma só vez, a montadora chinesa BYD despejou 5 459 carros elétricos no mercado brasileiro.
Dias antes, um navio duas vezes menor havia ancorado com uma usina eólica inteira. São oito geradores com 24 pás e torres da altura de prédios de 48 andares, além de peças e componentes. Foi recrutada uma frota de caminhões de até dezesseis eixos para levar a carga de 400 toneladas por 250 quilômetros de estrada até a margem paraibana do Rio Seridó. É a primeira das 108 usinas completas que a China Three Gorges Corporation (CTG) está importando da chinesa Goldwin para produzir energia eólica na Serra da Palmeira pelos próximos trinta anos, em escala suficiente para abastecer 40% da Paraíba.
Os dois navios ainda descarregavam automóveis e equipamentos importados da China, enquanto em Brasília o governo, o Congresso e os sindicatos industriais brigavam sobre a taxação das compras de pequeno valor (abaixo de 50 dólares, ou 250 reais) no mercado de comércio eletrônico, que é liderado por empresas chinesas.
Lula preferiu renegar o empoeirado catecismo protecionista que levou aos palanques nas últimas quatro décadas: “Como é que você vai proibir as pessoas pobres, meninas e moças que querem comprar uma bugiganga?”. Flavio Roscoe, da Federação das Indústrias de Minas Gerais, retrucou. Qualificou de “absurda” a lógica eleitoral aplicada à política de comércio exterior: “Não são bugigangas, são milhões de pacotes que entram no Brasil concorrendo com produtos nacionais e tirando empregos de milhões de brasileiros”.
O governo dividiu-se. Fernando Haddad (Fazenda) culpou Jair Bolsonaro e o antecessor Paulo Guedes por, supostamente, deixarem “passar a boiada” de crimes fiscais em compras na internet: “Eu fico admirado de ver como isso não foi objeto ainda de uma investigação”. Rui Costa (Casa Civil) alinhou-se à proteção das empresas chinesas — a BYD, que recebeu 5 459 carros elétricos em Suape, constrói uma linha de montagem na Bahia, governada pelo PT de Costa há duas décadas e que deu a Lula 72% dos votos em 2022.
“Brasil está mais dependente e não sabe o que quer com a China e com os EUA”
Entre a taxa zero nas vendas na internet defendida por Lula e Costa e os 60% desejados pelos industriais e pela Fazenda, o presidente da Câmara, Arthur Lira, negociou o limite de 20%, mais a tributação estadual — na prática, alguns produtos serão taxados em 60%. Bancadas do governo e da oposição aprovaram, mas exigiram que não houvesse registro de voto. “Não estou entendendo mais nada”, desabafou o deputado paulista Luiz Philippe de Orleans e Bragança, do Partido Liberal, descendente da família de monarcas que pincelou de modernidade a economia fechada e baseada na escravidão do antigo Império do Brasil.
O desentendimento é amplo, geral e irrestrito em Brasília. Resulta da liquefação política num ambiente de estagnação econômica e social que beira cinco décadas. O país perdeu o novo ciclo de modernização industrial, regrediu à condição de exportador de produtos primários e assumiu posição de grande dependência econômica de outra nação, comparável à de 100 anos atrás, quando só vendia café e, basicamente, para os Estados Unidos.
O Brasil está cada vez mais dependente da China. Na década passada, 15% das exportações destinavam-se ao mercado chinês. Agora, são 30%. Significa que o governo de Pequim se tornou o provedor de 1 em cada 3 dólares que irrigam as finanças e sustentam o consumo e o emprego verde-amarelo. Essa dependência brasileira de um único mercado para um terço das exportações se agrava na altíssima concentração das vendas (77% do total) em apenas três produtos primários: soja (31%), minério de ferro (23%) e petróleo (23%).
Não é culpa do imperialismo chinês. As perdas e danos são resultado de escolhas errôneas, genuinamente nacionais. Entre elas, a preferência por subsídios estatais às velhas indústrias baseadas em combustíveis fósseis, em lugar de incentivos à inovação, pesquisa e desenvolvimento. Governo e Congresso se perdem na discussão da “taxa das blusinhas”, das “bugigangas” e do “conteúdo nacional”, enquanto o país segue vacilante, sem definir o que quer nas relações com a China e com os Estados Unidos.
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Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895